Santos Dumont x Galeão não é Fla-Flu
Entenda a batalha entre os aeroportos do Rio. Privatização, reestatização e até uma Riviera brasileira estão entre as propostas para solucionar o imbróglio
No dia 16 de abril, Eduardo Paes tuitou um “boa sorte” a Jorge Sampaoli, recém-contratado técnico do Flamengo que desembarcara naquela manhã no Rio, vindo de Sevilha. Não era política de boa vizinhança do vascaíno, tampouco uma recepção oficial do homem público para o argentino. Havia outro propósito para a gentileza. Como Sampaoli demorou 20 horas até pisar no Galeão, já que o voo parou em Guarulhos (São Paulo), sua chegada acabou sendo mais uma oportunidade para alimentar a campanha do prefeito carioca em defesa da revitalização do Aeroporto Internacional Tom Jobim. No tweet, Paes destacou que a viagem levou o dobro do tempo necessário. “Veja como sofre o turista que voa pro Rio. Nós vamos mudar isso”, prometeu.
A atual crise do Galeão, que teve sua concessão devolvida à União em 2022 pela operadora Changi (controladora do RioGaleão), é associada ao aumento do fluxo de passageiros no Santos Dumont, este administrado pela Infraero. Em 7 de abril, também pelo Twitter, Paes criticou o projeto de expansão do Santos Dumont, dizendo que a estatal está de olho na receita, sem levar em consideração que essa ampliação inviabilizaria um Galeão já abatido, roubando-lhe passageiros. Assim, o aeroporto internacional voltaria para o controle da União, via Infraero, engordando novamente seus cofres. “E o Rio que se dane”, reclamou o prefeito, sem economizar vocabulário também no Instagram, onde qualificou a proposta da Infraero como “canalhice inaceitável”.
Desta forma, desenhada com os tons da rivalidade de um Fla-Flu, a concorrência entre os terminais cariocas tem mobilizado, nas últimas semanas, não somente o prefeito, mas também as demais autoridades locais e nacionais, além de especialistas e, é claro, os usuários. O assunto esquentou e ganhou visibilidade, o que é excelente para o debate democrático. Mas o tema é bem mais complexo do que um Fla-Flu. Envolve questões políticas, interesses econômicos, planejamento e infraestrutura urbana, qualidade de vida e, no limite, a relevância do Rio de Janeiro no mapa brasileiro. Há muito em jogo.
O Rio comporta dois aeroportos?
Apenas 14 quilômetros separam Galeão e Santos Dumont. Mas a distância em foco, atualmente, é medida em número de passageiros. Em 2022, segundo dados da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), o Santos Dumont recebeu 9,9 milhões de passageiros, e o Galeão, 5,7 milhões, invertendo um placar que, em 2019, foi de 8,9 milhões para o SDU, contra 13,6 milhões para o GIG. No ranking nacional, nesse mesmo período, o Galeão caiu da 4ª para a 10ª posição. Os números mostram que, enquanto o Santos Dumont já superou o patamar pré-pandemia Covid-19, o aeroporto internacional está bem abaixo daquele nível.
Uma primeira pergunta é se faz sentido haver dois aeroportos tão próximos no Rio; se isso não estaria gerando a canibalização de passageiros. Muitas cidades do mundo têm dois ou mais aeroportos, e especialistas parecem concordar que este não é exatamente o ponto central do problema por aqui. Outra informação importante é que o Rio de Janeiro é a cidade brasileira que mais recebe turistas estrangeiros. Surge, então, a segunda e mais relevante questão: como equacionar o movimento de passageiros e a distribuição das rotas das companhias aéreas para garantir a saúde financeira das operações dos dois terminais, associada à oferta de um serviço de qualidade aos usuários? Para isso, é preciso levar em conta outros aspectos, não apenas a batalha Santos Dumont x Galeão.
O recuo da economia fluminense e a falta de segurança
“É um erro, uma miopia, achar que a solução do problema do Galeão é o Santos Dumont”, explica um especialista do setor com mais de 40 anos de atuação em empresas aéreas e aeroportos. “Guarulhos, hoje, é mais algoz do Galeão do que o Santos Dumont”, afirma.
Apaixonado pelo Rio, ele lamenta a decadência econômica da cidade nos últimos anos, bem como a falta de segurança pública – fatores apontados como determinantes para a crise no Aeroporto Internacional Tom Jobim. “Eu não pouso no Galeão após as 22h. Prefiro pernoitar na cidade em que estiver e pegar um voo em outro horário”.
Comentários da população tuiteira nas postagens de Paes vão na mesma linha, a de que as autoridades não estão fazendo o básico. As cobranças incluem a insegurança e o trânsito nas linhas Vermelha, Amarela e na Avenida Brasil; a ineficiência do BRT Galeão e do transporte público em geral; o assédio de taxistas, motoristas e cambistas nos saguões; as obras inacabadas nos arredores; as tarifas altas cobradas por lojistas; entre outras. E sobram críticas quanto à infraestrutura e mobilidade em várias partes da cidade.
O especialista com quem conversei acrescenta ainda a questão da (não) profissionalização da mão de obra que atua no segmento turístico no Rio. “Não existe uma política de turismo para profissionalizar a mão de obra local; uma política inclusiva, que treine os menos favorecidos. O Rio tem uma beleza natural indiscutível, mas é mal aproveitada”.
Estatizar, privatizar ou fazer uma Riviera brasileira
Perguntei a ele a respeito da Infraero, se haveria mesmo uma intenção de “sabotar” o Galeão neste momento, para que este volte a ser administrado pela estatal. “Do modo como as coisas vêm a público, parece que há uma tentativa de dar poder e revitalizar a Infraero neste governo (federal) – o que me causa surpresa, pois é o mesmo governo que tocou as concessões dos aeroportos na década passada”. Sobre o papel da Infraero, diz que a estatal deveria se concentrar nos terminais regionais, deficitários, após a concessão dos aeroportos regulares à iniciativa privada. “Aviação é necessidade no Brasil, um país de dimensão continental. O dinheiro das outorgas, que vai para o Fundo Nacional de Aviação Civil, deveria bancar os terminais regionais, o que não acontece”, afirma.
E quais seriam as soluções pontuais para os aeroportos, afinal? Para o especialista em aviação, há três possibilidades, as duas primeiras polarizando o debate e a terceira, um tanto quanto surpreendente:
1) Governo federal, via Infraero, assume ambos os aeroportos, que passam a atuar de forma bem definida. O Santos Dumont fica com a ponte aérea Rio-São Paulo e talvez mais um ou dois destinos, como Brasília. Já o Galeão, devolvido pela Changi, concentraria os voos internacionais e os demais voos domésticos do Santos Dumont.
2) A União relicita o Galeão, concedendo no pacote o Santos Dumont, para o mesmo ente privado, que decidiria, então, como tornar o combo das duas operações saudável economicamente.
3) O governo desiste do Santos Dumont e transforma o local em uma espécie de Riviera brasileira, uma área de luxo, voltada ao lazer e ao turismo. Já existe pelo menos um projeto (da iniciativa privada) nesse sentido.
Nos próximos dias, Paes e o governador Cláudio Castro têm uma reunião marcada sobre o assunto com o ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França. Seja qual for o encaminhamento, é preciso que seja tratado com transparência e que leve em conta a complexidade do cenário, para que os aeroportos do Rio de Janeiro não virem troféus políticos ou instrumentos econômicos para alimentar o poder.