A outra guerra
Tecnologia, conexões globais e sanções econômicas dão novo contorno à invasão da Ucrânia
“Mãe, vai ter Terceira Guerra Mundial?” “Não sei, filha, acho que não.”
Ainda que minha resposta carregue uma dose de otimismo materno, realmente não acredito que a invasão da Ucrânia pela Rússia se transforme em uma guerra mundial nos mesmos moldes das duas grandes guerras do século XX.
O planeta hoje é outro, apesar do bombardeio inclemente sobre várias cidades ucranianas, enquanto homens de terno ensaiam um frágil cessar-fogo. Como bem explicou Thomas Friedman em recente análise no New York Times (We Have Never Been Here Before), o mundo não é nem será mais o mesmo.
Temos, sim, no Leste Europeu, um conflito com potencial destruidor de atrasar o mundo, como em séculos passados, mas, simultaneamente, a tecnologia e as conexões nos levam a outro tipo de guerra. É o futuro.
A economia globalizada é parte crucial desta guerra. Há alguns dias, o sistema financeiro do governo Putin foi sufocado com a suspensão da Rússia da rede Swift, Sociedade de Telecomunicações Financeiras Interbancárias Mundiais. O Swift é um sistema de comunicação que possibilita, de modo padronizado, a transferência de recursos entre empresas. O banco central russo sentiu o golpe de asfixia: os juros dispararam, o rublo perdeu valor, e uma corrida aos bancos é a cereja do bolo de um colapso financeiro. “É a economia, estúpido”, diria James Carville.
Nesse tabuleiro de xadrez, a preponderância das empresas é inegável. Com a hashtag #ukraine, CEOs e marcas vêm tendo mais visibilidade nas redes sociais e influência do que líderes nacionais ou mesmo a ONU, que é um dos filhotes da Segunda Guerra Mundial.
Em decisões ágeis, de cunho político, Apple Pay e Google Pay pararam de funcionar e travaram a compra de bilhetes no metrô russo, certamente gerando um impacto maior do que os monocórdicos discursos no tradicional Conselho de Segurança da ONU.
A intervenção de Elon Musk, que disponibilizou internet via satélite Starlink à Ucrânia, é também algo sem precedentes, capaz de mudar o curso de uma história. Talvez um dos simbolismos desta guerra.
A cada dia, multinacionais de peso boicotam negócios com a Rússia, de empresas de petróleo a automobilísticas, passando por bancos, companhias de telecomunicações e construção civil. Em outra frente de batalha, o YouTube desmonetizou canais estatais russos. O impacto dessas e de medidas similares sobre a população russa é enorme. A médio e longo prazos, pode ser tão mortal quanto as bombas que atingem inocentes em território ucraniano.
Esse contexto faz com que o assassinato de Francisco Ferdinando pareça ficção em um universo paralelo e distante. E me leva a crer que a Terceira Guerra Mundial, no sentido estrito do termo, à imagem e semelhança das outras, não vai eclodir. Isso não quer dizer que está tudo “safe”, que devemos minimizar riscos nucleares e normalizar as mortes causadas por conflitos, rebeliões e invasões – seja na Ucrânia, sejam nas centenas de guerras espalhadas pelo globo.
Mesmo sem a guerra mundial, o que está por vir não será fácil, ainda que a boa notícia do cessar-fogo chegue logo.
Dados do Banco Mundial mostram que a Ucrânia tinha 44 milhões de habitantes em 2020. A nação, que já foi chamada de “celeiro do mundo” pela capacidade agrícola, conta com uma forte indústria e tem destaque na produção de minério. O PIB girava em torno de US$ 155 bilhões, mas registrou recuo de 4% devido aos efeitos da pandemia de Covid-19. A inflação é uma preocupação. A guerra agrava exponencialmente tudo isso, em um país cujos gastos militares somam cerca de 4% do PIB. Não é pouco.
Distante mais de 10 mil quilômetros da Ucrânia, o Brasil também sente os efeitos da complexa guerra – e agora não se trata do envio de pracinhas. São consequências humanitárias, diplomáticas e econômicas, estas últimas registradas de imediato nos preços do petróleo. O trigo também ficará mais caro, já que tanto Rússia quanto Ucrânia estão entre os maiores produtores mundiais da commodity. No cenário atual, o aumento das incertezas atinge ainda a cotação do dólar, cuja volatilidade em um ano eleitoral já não é para principiantes.
Ruim por aqui, pior por lá. Sabemos que a Ucrânia, além de destruída territorialmente, com famílias destroçadas, chorando por seus mortos e feridos, terá o desafio adicional de reconstruir sua economia nos próximos anos.
A guerra econômica tá on. Não tem trégua.