Teatro, por Claudia Chaves: “O Mercador de Veneza”
De todos os textos de William Shakespeare, a peça escrita entre 1596 e 1599 é a mais feroz crítica ao mundo que se anuncia

De todos os textos de William Shakespeare, o da peça “O Mercador de Veneza”, escrita entre 1596 e 1599 (geralmente datada de 1597), é o mais feroz crítico do mundo que se anuncia. Os personagens, já totalmente despidos de qualquer aproximação com o divino, unem dois contos populares, três histórias de amor e uma cena de julgamento de cortar os nervos, que envergonha as melhores séries do gênero.

A montagem contemporânea de “O Mercador de Veneza”, protagonizada por Dan Stulbach, surpreende ao revisitar o clássico de Shakespeare com uma leitura que dialoga fortemente com os temas escritos há, exatamente, 428 anos. A cupidez, o preconceito e a paixão pelas mercadorias ganham nova luz ao serem interpretados com densidade crítica e estética refinada. A direção de Daniela Stirbulov é capaz de nos lançar na contemporaneidade, com a adição da banda e dos letreiros vermelhos no cenário.

Mais que uma adaptação fiel, trata-se de uma reinvenção dramatúrgica que escancara como os vícios do passado persistem em nosso presente. Diferentemente da montagem da Broadway liderada por Al Pacino, esta versão propõe uma visão menos dramática, comprometida com a complexidade humana, ressaltada pela atuação equilibrada do conjunto de atores.

O excelente movimento de corpos é fluido e orquestrado, com a direção de Marisol Marcondes, que apresenta uma abertura do espetáculo muito interessante: cada ator ocupa o palco com números individuais de dança e circo, já anunciando o que se verá adiante, revelando o equilíbrio preciso de um elenco coeso e afinado: Dan Stulbach, Augusto Pompeo, Amaurih Oliveira, Cesar Baccan, Gabriela Westphal, Júnior Cabral, Marcelo Diaz, Marcelo Ullmann, Marisol Marcondes, Rebeca Oliveira, Renato Caldas e Thiago Sak.

Dan Stulbach é um Shylock de presença marcante, cuja voz carrega um leve sotaque — suficiente para localizar o personagem culturalmente, sem jamais escorregar para o parodístico. Sua interpretação é forte, sem recair no estereótipo, fazendo de uma vítima do preconceito alguém que se perde na vingança, na inútil tentativa de vencer o establishment, então ainda representado pelos nobres. O elenco brilha como um todo, mas vale destacar Thiago Sak, como o Príncipe de Aragão, um dos fracassados e ridículos pretendentes de Pórcia, um elo irônico com a latinidade moderna.
O que encanta a plateia é que “O Mercador de Veneza” é teatro na veia. Elenco de 12 pessoas, cenário, figurinos, interpretação, direção e adaptação em um conjunto, mais do que encenarem Shakespeare, forçam-nos a olhar no espelho.
Serviço:
Teatro Nelson Rodrigues – Caixa Cultural
Sextas-feiras, às 19 h; sábado e domingo, às 18h
