Teatro, por Claudia Chaves: “Mostra a tua cara”
A dramaturgia de Rogério Corrêa cria quatro personagens com origens, histórias e razões totalmente diferentes
Como costuma dizer o economista Pedro Malan, no Brasil, até o passado é incerto. E, apesar ou por causa disso, há pouquíssima dramaturgia sobre períodos altamente conturbados. O Governo Collor — uma verdadeira montanha-russa, com mentiras, corrupção, decepção e a dor da gente — não sai no jornal. Essa dor, esse desalento dos eleitores do “caçador de marajás” estão nus e crus em “Mostra a tua cara”, de Rogério Corrêa, com direção de Isaac Bernat.
Com uma citação aos filhos de John Kennedy (JFK, 1917-1963) e aos filhos de Jânio Quadros (1917-1992), a excelente dramaturgia de Rogério cria quatro personagens com origens, histórias e razões totalmente diferentes, apesar dos pontos de contato que possuem, presentes no texto, sem obviedade alguma, nada gratuitos. Cada personagem despeja seu fluxo de consciência sobre a própria vida e as consequências do desacerto das políticas “colloridas” em seus destinos. Cada um fala de si, em solilóquios, cada qual com a sua embocadura, texto, sotaque, movimentos corporais que transformam cada personagem em uma bela metonímia de segmentos brasileiros.
A direção de Isaac Bernat é um primor. Em cena, um michê de sauna (Thadeu Matos), uma dona de casa classe média (Ângela Rebello), um empresário (Alexandre Galindo) e uma cantora de axé (Letícia Isnard), cada qual com seu cada qual, em um bar diferente. A solidão que os marca transforma-se em um diálogo com os ausentes. A direção cria um jogo em que há dinamismo, as atuações ainda que individuais falam com ausentes de presença, mas coadjuvantes fundamentais que dão lógica às trajetórias.
Letícia faz uma cantora de axé, com figurino de época, um misto metafórico de atriz global com cantora de baixo escalão — esse tipo de mulher que tem coragem de enfrentar seus equívocos e transformá-los em acerto. Letícia, grande atriz que é, consegue extrair comicidade da desgraça. Ângela fala manso e começa a transformar a euforia em ódio; desespero, em uma curva de criação emocionante.
Alexandre faz o empresário-padrão, abandonado, cuja atuação traz, ao fundo, a prepotência insuportável. Thadeu faz o michê com dignidade, um perdido na noite. “Mostra a tua cara” deve ter vida longa com presença em escolas, ruas, sindicatos, em todas as arenas em que o público possa presenciar e ter certeza de que temos um passado certo. Somos um povo dos melhores, enganados pela política, pelos parentes, pelos amigos, nos trabalhos; apesar disso, seguimos em frente, contamos nossas mazelas. “Mostra a tua cara” é uma bela metáfora dos enganos, em todos os níveis, mas que podem alcançar a redenção, como acontece com o michê. Dessas contradições, é que se faz o grande teatro, arte de pura qualidade.
Serviço:
Teatro Firjan, Centro
Segundas e terças, às 19h