Teatro, por Claudia Chaves: “A Falecida” — o valor de um clássico
Sérgio Modena constrói Nelson Rodrigues, sendo Nelson Rodrigues em sua forma absoluta

Ao ver a abertura de “A Falecida”, com o cenário que reconstrói um caixão, os homens todos iguais com máscara, a pergunta é “que Nelson Rodrigues é esse?”. A resposta vem rápida. Sérgio Modena constrói Nelson, sendo Nelson em sua forma absoluta. A montagem é capaz de trazer o texto como está escrito, mas com uma contemporaneidade na forma, no que se vê, surpreendente. Essa fórmula de conteúdo e forma transforma a atual montagem em uma daquelas que ficam para a história.

Os elementos visuais, o figurino, as luzes, a movimentação das mesas só seguem a rubrica de Nelson (sem cenários) ao mesmo tempo em que provoca pequenas e agradáveis surpresas. O respeito ao autor é também nos detalhes. As gírias da década de 50, os maneirismos gestuais, os hábitos, as relações, todos lá, ficam presentes no elenco equilibrado com Camila Morgado, Thelmo Fernandes, Stela Freitas, Gustavo Wabner, Alcemar Vieira, Thiago Marinho e Alan Ribeiro.

O que transforma “A Falecida” em memorável? A forma de interpretação de todos os atores é o que se espera em um texto chamado de “tragédia carioca”. Há dramas, tristezas ao mesmo tempo em que acontece uma certa ginga carioca, uma malemolência de balneário na voz e nos gestos, do carnaval e das conversas sobre futebol.
Camila compõe uma Zulmira vingativa, invejosa e ao mesmo tempo ingênua. Difícil fazer uma personagem com todas as contradições — a histérica clássica de Freud, que transforma em sintoma todas as mágoas que não pode exprimir. Thelmo é um Tuninho que, sem qualquer exagero, vive em um eterno perde-ganha, o melhor que já vimos por essas plagas. Gustavo é um Timbira como se imagina; Stela faz a picareta cartomante com todo o viés de humor; Alcemar, Alan e Thiago se dividem nos outros papéis dentro da mesma emoção.

Escrita há 70 anos, “A Falecida” entroniza o público que nascia sob a égide da indústria do entretenimento: o futebol, o poder do rádio, o desejo desenfreado do luxo, os valores e os locais sociais dados pelo poder aquisitivo. A produção da dupla Vera Novello e de Ana Velloso é um acerto por comprovar que a alma do teatro é o ator com um texto de qualidade, um diretor primoroso, um elenco que se destaca. Enfim, um clássico em uma encenação criativa é uma obra de arte.
Serviço:
Teatro Nelson Rodrigues, na Caixa Cultural, no Centro (Av. República do Paraguai, 230)
Até 4 de maio, quintas e sextas às 19h; sábados e domingos às 18h
Sessão com tradução em Libras dia 27 de abril, às 18h
