Susanna Lira (cineasta): “Que a história de Rosa reverbere como espelho”
Lira ganhou três prêmios no último Festival do Rio por “#SalveRosa” — figurino, atriz (para Klara Castanho) e filme, pelo voto popular

Quando recebi o convite da Mara Lobão para dirigir #SalveRosa, pressenti que seria uma experiência intensa e desafiadora. Além de abordar um tema complexo e urgente, o projeto marcava minha estreia na ficção, depois de uma trajetória profundamente ligada ao documentário. Desde o início, entendi que não se tratava apenas de um thriller psicológico, mas de um mergulho nas sombras das redes sociais e na vulnerabilidade de nossas crianças diante da exposição digital. O roteiro do filme nos convida a duvidar do aparente sucesso e do enriquecimento rápido de crianças e adolescentes nas redes. Por trás das luzes, likes e contratos publicitários, existe uma lógica de exploração muitas vezes disfarçada de oportunidade. São infâncias transformadas em marcas, em produtos de consumo, submetidas a uma pressão emocional e estética brutal. A narrativa questiona quem realmente lucra com essa exposição e quais os impactos psicológicos e sociais dessa visibilidade precoce. O filme propõe esse olhar crítico, não para demonizar as redes, mas para revelar o abismo que se abre quando o valor de uma criança passa a ser medido pelo engajamento.
Para traduzir essas camadas tão sensíveis, minha proposta foi construir uma atmosfera densa e inquietante, capaz de tensionar o olhar do espectador entre o real e o imaginado. A mise-en-scène buscou traduzir esse universo virtual, luminoso e sedutor à primeira vista, mas obscuro em suas entranhas. Trabalhar com um elenco tão comprometido e sensível foi essencial para revelar as múltiplas camadas de cada personagem. A parceria com Klara Castanho e Karine Teles foi essencial. Ambas mergulharam de forma generosa em personagens complexos, que vivem sob o peso da exposição. Foi um trabalho conjunto de escuta, de sensibilidade e de coragem.
Estrear na ficção com um filme de suspense foi, sem dúvida, o maior desafio. O gênero exige precisão rítmica, domínio do tempo e uma construção minuciosa da tensão, tudo isso sem perder a profundidade emocional que eu sempre busquei nas minhas obras documentais. Em #SalveRosa, o suspense não é apenas um recurso narrativo, mas uma forma de traduzir o medo e a insegurança que atravessam as vidas inventadas nas redes sociais. Foi desafiador equilibrar o ritmo e a atmosfera do gênero com um olhar mais sensível e realista, que não transformasse o tema em espetáculo, mas em reflexão. Dirigir um thriller psicológico como primeiro longa de ficção foi como caminhar sobre uma linha fina entre o controle e o risco, exatamente onde o cinema, para mim, se torna mais vivo e fascinante.
Pessoalmente, a parte mais poderosa de fazer esse filme foi ter uma equipe majoritariamente feminina para a construção de #SalveRosa. O filme trata de temas profundamente ligados à vulnerabilidade e à violência simbólica e digital sofridas por mulheres e meninas, e essa presença feminina nos bastidores trouxe uma escuta sensível, um olhar de empatia e uma força coletiva rara. Cada departamento, da fotografia à arte, da produção à direção de atores, foi atravessado por essa energia de cuidado e resistência. Essa rede de mulheres ajudou a criar um ambiente de trabalho ético, colaborativo e potente, onde a delicadeza e a coragem coexistiam. Acredito que essa presença se traduz na tela, em cada escolha estética e narrativa, fazendo do filme não apenas uma história sobre mulheres, mas também um filme feito a partir do olhar delas.
Espero que #SalveRosa provoque no público mais do que indignação, desejo que gere inquietação. Que cada espectador saia do cinema com uma sensação de desconforto, mas também de responsabilidade. O filme fala sobre as vidas artificiais que habitam as telas, mas, acima de tudo, sobre o quanto estamos dispostos a enxergar o que há por trás de tudo isso. Quero que as pessoas se reconheçam, que percebam como a exposição faz parte da nossa vida cotidiana, e que a história de Rosa reverbere como um espelho. Se o público sair tocado, questionando seus próprios limites acredito que o filme terá cumprido seu papel.
Susanna Lira é cineasta, com destaque para documentários e séries de ficção. São mais de 20 anos de carreira com trabalhos de forte apelo social e político: 18 longas, dezenas de curtas e séries, dezenas de prêmios em festivais nacionais e internacionais, sendo os últimos no Festival do Rio, por “#SalveRosa”, para melhor figurino, melhor atriz (Klara Castanho) e melhor filme (voto popular).