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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Ricardo Brajterman: Nesse Corpus Christi, o Papa João Paulo II será judeu

"Serei o mais católico dos judeus, pois independentemente do que o destino nos reservou, embaixo da nossa pele a cor do sangue é a mesma"

Por lu.lacerda
Atualizado em 17 jun 2025, 19h40 - Publicado em 17 jun 2025, 19h00
ricardo brajterman 1
 (./Divulgação)
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O celular vibrou, e não era cliente em apuros, nem golpe do pix falso na minha conta bancária.

Era a Arquidiocese do Rio me fazendo o convite mais inesperado que eu já recebi na vida: interpretar o Papa João Paulo II, para mais de 60 mil fiéis na procissão de Corpus Christi, a maior da Igreja Católica, para celebrar a presença de Cristo na Eucaristia, num gigantesco palco que será construído em frente à Catedral Metropolitana, na Avenida Chile, na quinta (19/06).

O convite para viver o Santo Padre veio do diretor teatral Luiz Fernando Bruno, por indicação da Isabella Secchin, querida professora de teatro da minha adolescência, que se lembrou de mim mesmo passados 36 anos do dia em que suspendi as aulas no “O Tablado” (de quem hoje sou advogado voluntário), para dedicar-me ao curso de Direito na PUC/RJ, onde acabei fazendo mestrado em Direito Constitucional. Há cerca de 23 anos, leciono Processo Civil e Direitos Autorais.

Aceitei o honroso convite sem pensar duas vezes. Cancelei o feriado na Serra e, com sorriso frouxo no rosto, fui, de sala em sala, contar a novidade para meus sócios no tradicional escritório Candido de Oliveira Advogados, o mais antigo do Brasil (fundado em 1891) e que, dentre outras realizações, dá nome ao CACO (Centro Acadêmico da Faculdade de Direito da UFRJ). Desde 1926, teve dois presidentes da OAB e, agora, tem um advogado-ator no elenco.

Todos me deram a maior força: “não vai abandonar o escritório?”, “quero te ver na Netflix”, “todo advogado é ator”, “faço questão de ir te assistir”, “tem muito empresário de sucesso que começou depois dos 50”.

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Lima Duarte, José Wilker, Paulo Autran, Tarcísio Meira, Fernanda Montenegro e o diretor Aderbal Freire Filho chegaram a estudar Direito — uns terminaram o curso; outros abandonaram para viver mil vidas na arte.

Meus colegas de escritório sabem que tenho o hábito de ir teatro cerca de duas vezes por semana e muitas vezes me acompanham; que estudei fotografia e construí grande acervo de fotos de cenas postadas no Instagram (no meu perfil e no das produções que presenteio com minhas imagens); que participei da produção e da iluminação da primeiríssima montagem do “Confissões de Adolescente” no porão da Casa de Cultura Laura Alvim, com 17 anos; que minha última performance como ator foi ao lado de nomes hoje consagrados: Clarice Niskier, Isio Ghelman, Gustavo Gasparani, no “Bonitinha mas ordinária”, dirigido por Eduardo Wotzik.

Mas Bernard, o sócio da área Trabalhista do escritório, trouxe uma boa reflexão: “Que bacana! Será a primeira vez na história que teremos um papa judeu”.

Sou judeu somente porque meu pai (falecido há 46 anos, quando eu tinha 9) e minha mãe são judeus. Já meu filho não é considerado judeu porque, pela lei judaica, a religião é herdada do ventre judaico, e minha mulher é católica.

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Então sou judeu por mera casualidade da vida: porque a cegonha poderia voar mais 2 metros, eu poderia muito bem, por força do destino, ser filho adotivo de um casal homoafetivo e ter dois pais ou duas mães; ser filho do querido amigo babalaô Ivanir dos Santos e ser candomblecista, ou da ministra Marina Silva, e ser evangélico; e, também, por que não? Poderia ser filho de todos esses pais e mães que inventei e decidir não ter a mesma religião, time e interesses que eles.

Pelo acaso, tudo é possível, nada é controlado por nós — precisamos aprender a viver as dores, alegrias e desafios que o destino nos reservou.

Hoje, além de impotente diante da devastação da natureza que abala todo o Planeta — e que não faz parte do acaso —, de ter que aceitar irresignado o surgimento de uma “Nova Era” da Inteligência Artificial, remodelando toda a nossa maneira de viver — não sei se para o bem ou para o mal —, ainda há a ameaça de uma terceira guerra global por conta de dezenas de conflitos cruéis, injustos, injustificáveis, em que, aí, sim, por conta do destino, eu poderia estar no epicentro do horror, afastado de um lugar seguro e do lado mais fraco: no Afeganistão, no Iêmen, na Síria, no Sudão do Sul, no Congo, em Mali.

Não precisa ir para outro continente: eu poderia ter nascido logo ali, numa comunidade carioca habitada por 99,9% de trabalhadores, dominada por traficantes e milicianos extraordinariamente armados, que, além de tirarem a dignidade dos moradores, ainda os tornam vulneráveis a balas perdidas e a operações policiais midiáticas que não trazem solução alguma para o problema da segurança pública.

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Diante dos mistérios do destino, da impossibilidade de controlar a sorte ou o azar de inúmeros acontecimentos que escrevem minha história, questiono-me: como digerir o fato de que o acaso me poderia ter feito uma das vítimas do ataque terrorista de 7 de agosto de 2023, em Israel, ou numa criança em Gaza, mutilada, sem família e perspectiva?

E, para ter um mundo mais justo, de que maneira poderíamos equilibrar o excesso de sorte ou azar que o destino reservou para cada pessoa ou grupo social? Como começar uma mediação, um diálogo, uma atitude para construir pontes em vez de aumentar a distância entre pessoas ou populações cujo destino as jogou em situação de vulnerabilidade?

Resposta: jamais esquecer de agir com alteridade, reconhecendo e respeitando a existência do “outro” em suas singularidades, como alguém com pensamentos, experiências e valores próprios, exercitando a capacidade de conseguir receber o “outro” fora do nosso egocentrismo.

Pelos Direitos Humanos, a alteridade é essencial para a ideia de que todo ser humano tem dignidade, independentemente de sua cultura, religião, etnia, orientação sexual ou condição social, reconhecendo-se o “outro” como diferente, mas igualmente valioso.

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Ou seja, a luta contra o racismo, homofobia, intolerância religiosa, xenofobia depende da capacidade de enxergar o “outro” como alguém digno de respeito, mesmo que seja diferente de mim.

Por isso, a importância sociocultural e terapêutica do teatro, onde ator ou aluno podem minimamente experimentar e interpretar a dor e a falta do outro, pela perspectiva daquele que lhe é estranho, num nítido exercício de alteridade.

Por isso, mesmo criado num ambiente familiar, cultural, religioso, econômico, geográfico, racial completamente diferente das do Papa João Paulo II, na quinta (19/06), durante a procissão de Corpus Christi, ao representar Sua Santidade, serei o mais católico dos judeus, pois independentemente do que o destino nos reservou, embaixo da nossa pele a cor do sangue é a mesma, e pelo nosso olhar não deveria haver “outros”, mas um só, o ser humano.

Serviço:

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Auto de Corpus Christi 2025

Data: 19 de junho (quinta-feira)

Horário: 17h

Local: Avenida Chile – em frente à Catedral Metropolitana. O espetáculo é aberto ao público.

Ricardo Brajterman é advogado, mestre e bacharel em Direito pela PUC-Rio e professor de Direito de Processo Civil (2001/2009) e de Direitos Autorais pela mesma universidade. É sócio do escritório Candido de Oliveira Advogados.

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