Rafael Dragaud, sobre o Roblox: “O amor, às vezes, tem cara de ‘não'”
“Confiança entre pais e filhos não é cancelar a vigilância”

O roteirista da vida tem um talento especial para armar encruzilhadas quando estamos com pressa. É no piloto automático que a gente erra a entrada, diz “tá bom” para encerrar uma conversa importante e clica em “aceitar” sem ler as letras pequenas. Com os filhos, esse piloto automático é ainda mais perigoso: basta um “pode?” dito com olhos brilhando e um “não tem chat, pai” para, sem perceber, abrirmos o portão da nossa casa para algo que não conhecemos.
Era uma quarta-feira igual a todas as outras, e meu filho chegou em casa com uma reclamação que não parecia grave. Ainda com a mochila nas costas, ele disse: “Todo mundo na escola joga, pai, eu fico sem assunto.” Eu lembro: nessa idade, a exclusão no recreio pode doer mais do que muito castigo. Eu quis ser cuidadoso — ou pelo menos parecer — e perguntei o básico: “Tem chat com estranhos?” Ele respondeu com a certeza de quem quer fazer parte: “Não.” Era o passaporte para um território desconhecido, e eu autorizei. Foi um “sim” pequeno, desses que a gente dá achando que está no controle, como quem libera o skate ali no quarteirão de baixo. Eu achei que estava junto. Mas não estava.
Algum tempo depois, no banco de trás do carro, pintou a cena que eu não esqueço. Ele e um amigo conversavam sobre uma fase difícil do tal joguinho. O amigo quis saber como ele tinha passado. Meu filho, rindo, contou que “apareceu alguém” no jogo, deu a dica de onde encontrar umas asas (ou algo assim) e sumiu. Asas: a palavra ficou voando no meu ouvido. Passei de motorista a guarda de trânsito em um segundo. Perguntei: “Quem deu a dica?” — “Não sei, apareceu e sumiu.” — “Mas você disse que não tinha chat, filho…”
Há silêncios que são sirenes. Naquele instante, entendi que eu não tinha feito uma pergunta, eu tinha terceirizado uma responsabilidade. Confiei no “não tem chat” como quem confia no portão eletrônico. E o portão abre, claro; o que entra é que a gente não controla. Pedi para desinstalar. Ele ficou contrariado, e eu também. Ambos entendemos ali, juntos, que o amor, às vezes, tem cara de “não”.
Desinstalar: verbo antipático e, ainda assim, um dos mais amorosos que um pai pode conjugar. Porque a tentação era outra: negociar, adiar, “vamos ver”, “hoje pode, amanhã não”. Mas eu tinha visto as asas. Quando um estranho nos oferece asas, o preço pode ser bem alto — e quase nunca aparece na tela.
Algumas semanas depois, começaram a pipocar no meu celular notícias que me assustaram, mas, na correria da vida — sempre ela — eu ainda não tinha unido as pontas: não havia entendido que as reportagens falavam do jogo que meu filho havia desinstalado. Fui checar, e ele confirmou: era o Roblox. Para quem não conhece, é uma plataforma onde milhões de usuários criam e jogam jogos diferentes — um universo infinito de possibilidades que fascina especialmente crianças e adolescentes. Mais de 85 milhões de pessoas entram lá todos os dias no mundo. A plataforma é de graça, mas funciona com uma moeda virtual chamada Robux.
Descobri, atônito, que muitos amigos do meu filho continuam jogando. Se eles ainda estão lá, outros pais ainda não sabem dos riscos. Por isso, quero citar histórias reais, porque, por trás das estatísticas, há crianças com rostos, pais com quartos vazios e brinquedos no chão.
Nos Estados Unidos, metade das crianças com menos de 16 anos joga Roblox. E, entre esses milhões, algumas histórias terminaram em tragédia: como a de Ethan Dallas, um menino de 15 anos que tirou a própria vida depois de ser manipulado por um predador sexual no Roblox e no Discord; ou a de uma menina de 11 anos, em Nova Jersey, explorada por um adulto que começou o contato no jogo e continuou no aplicativo; ou ainda a de uma garota de 13 anos sequestrada e abusada após interações aparentemente inocentes. Aqui no Brasil, quase 9 milhões de crianças acessam essa plataforma todos os dias. E elas não devem ser tratadas como estatística.
Quem tem acompanhado de perto essa realidade é a juíza Vanessa Cavalieri, titular da Vara da Infância e Juventude do Rio de Janeiro e idealizadora do Protocolo Eu Te Vejo, voltado à prevenção da violência digital contra crianças e adolescentes. Em suas palestras e entrevistas, ela não poupa palavras: “A rede social é uma praça pública escura e cheia de estranhos”, diz. Para ela, quando as pessoas entenderem que “a rede digital é um espaço público, igual à vida real, vão se comportar na internet da mesma forma que se comportam na rua, porque ninguém deixa uma criança numa praça pública e vai embora.”
A juíza palestrou na escola do meu filho, e algumas de suas frases — feitas para abalar — de fato abalaram. “A família pode fazer combinados, comprometendo-se a não olhar a conversa do filho com a namorada ou com a melhor amiga, por exemplo. Agora, um grupo de WhatsApp onde há 50 pessoas não é privado, é um lugar público.” Essa frase me fez repensar completamente o que eu considerava “privacidade” infantil. Outra que ecoou em casa: “Se a gente já sabe que a internet é a rua, que não é segura, que pessoas perigosas estão no WhatsApp, no TikTok, no Discord, entre outras plataformas, é evidente que os pais precisam supervisionar.” Foi bom ser abalado. Às vezes, precisamos de alguém de fora para traduzir em palavras claras o que já sabíamos, mas fingíamos não saber.
A praça virtual tem vielas escuras, e o que a gente chamava de “joguinho” é, muitas vezes, uma cidade inteira: com esquinas sem luz, gente adulta fantasiada de criança, portas que se abrem com moedas coloridas, convites que parecem presentes e becos de conversa onde a moderação não alcança. A diferença é que essa cidade cabe no bolso. E entra no quarto do seu filho sem tirar os sapatos, com a sujeira da rua.
A vida de pai e mãe é um equilíbrio ridículo de se manter: queremos criar autonomia e, ao mesmo tempo, estar perto. É como ensinar a atravessar a rua. Primeiro, atravessamos de mão dada. Depois, soltamos a mão, mas ficamos na calçada, atentos. Por fim, eles atravessam sozinhos — e a gente aprende a respirar. O mundo digital bagunça essa metáfora: a rua muda de lugar o tempo todo, o sinal não é da prefeitura, a faixa é desenhada por empresas, e o guarda — quando existe — chega atrasado.
“Mas você não confia no seu filho?” Confio, mas confiança entre pais e filhos não é cancelar a vigilância; é combinar regras que protegem o futuro do amor que temos. Não é devassar a intimidade; é assumir que um grupo com cinquenta pessoas não é privado, é rua. O que resta, então? Conversa. Combinados claros. Repetir o óbvio sem humilhar. Olhar o histórico sem transformar a casa numa delegacia. Sentar do lado para entender a lógica daquele mundo que não foi feito para nós, mas captura os nossos.
Há uma dor secreta nessa história: a nossa vontade de sermos pais modernos, parceiros, amigos. O desejo de não “exagerar”, de não virar o chato da rodada, de não produzir a criança “sem assunto”. E, no entanto, o trabalho é justamente esse: sustentar o desconforto de dizer “não” quando o “sim” faria a noite correr mais suave. Educar é segurar o olhar contrariado e, ainda assim, fazer o que é preciso. Um pai que só diz “sim” não é pai: é uma ausência perfumada e irresponsável.
Eu poderia fantasiar um final feliz, mas prefiro ser honesto: não existe blindagem perfeita. Há, sim, uma responsabilidade repartida — plataformas, escolas, justiça, famílias — e, ainda assim, sobrará trabalho dentro de casa. O que aprendi naquele dia no carro foi simples e difícil: o cuidado não pode ser terceirizado para um botão de “controle parental” nem delegado à frase “não tem chat”. Cuidado é verbo no presente do indicativo: conversar, acompanhar, ajustar, recuar, avançar, desinstalar, reinstalar, jogar junto, sair do jogo. E, sobretudo, estar disponível para ser o chato amoroso que, no dia seguinte, faz o café e pergunta: “E aí, como você está, meu amor, dormiu bem?”
Porque, no fim, a escolha que fazemos nessas encruzilhadas é menos sobre tecnologia e mais sobre vínculo. Não se trata de demonizar a rede — ela também guarda beleza, criatividade, descoberta —, mas de lembrar que somos os adultos do recinto: os que acendem a luz antes de entrar, que perguntam o caminho, que esperam o sinal abrir, os que, quando veem asas aparecendo do nada, chamam para perto e dizem: “Essas, não.” As asas que a gente oferece são outras: critérios, escuta, coragem, tempo. Com elas, sim, dá para atravessar.
Rafael Dragaud é roteirista,