Rafael Dragaud (roteirista): “O olhar de dentro é o que me interessa”
"O que me move a escrever não é apenas a vontade de compartilhar, mas a necessidade quase física de traduzir aquilo que só se enxerga de dentro"

Estrear uma coluna é, inevitavelmente, pousar num novo galho — deslocar o próprio lugar de observação como quem muda de janela numa casa antiga e descobre que o velho quintal pode revelar geometrias imprevistas. Apoiar os pés num território ainda não mapeado do pensamento permite que o olhar se reconfigure diante do mundo. Esta é minha primeira vez aqui, e o que me move a escrever não é apenas a vontade de compartilhar, mas a necessidade quase física de traduzir aquilo que só se enxerga de dentro — seja de dentro de mim mesmo, seja dessa capacidade sempre frágil e sempre renovada de me colocar nos olhos do outro, exercitando algo que chamamos de empatia, palavra que carrega em si uma beleza quase perdida pelos usos menores que lhe impusemos.
Nesta estreia, escolho começar por algo que tem ocupado meus dias com uma intensidade particular: a aventura que atende pelo nome de “Tempo Rei”, última turnê de Gilberto Gil, da qual tenho a honra — e por vezes o desconcerto — de ser diretor artístico. Mas o que busco aqui não é o relato exterior, a crônica do espetáculo; é sempre esse olhar de dentro que me interessa, o cotidiano como território de revelação, as pequenas revoluções que acontecem quando ninguém está vendo, as pausas que se revelam não como fins, mas como outras formas de começar.
Estar próximo de Gil é confrontar-se com uma peculiar relação com o tempo. Ele parece habitar uma temporalidade que escorre de modo diverso, mais dilatada, mais presente — como se houvesse descoberto o segredo de fazer caber a eternidade no instante sem que isso implique pressa ou ansiedade. Vive seu próprio tempo e, simultaneamente, todos os tempos, numa simultaneidade que desafia nossa compreensão linear das coisas. É como se tivesse encontrado uma forma de estar que torna o agora elástico, generoso.
Foi no meio dessa temporalidade expandida que, há poucos dias, algo me ocorreu — e compartilho aqui essa intuição como quem confessa uma invenção necessária, uma espécie de fake news poética que talvez seja mais verdadeira que os fatos: creio ter compreendido como deveria se chamar o próximo disco de Gil. Repouso.
Não tenho confirmação alguma, nem busco tê-la. Não vi capa, não ouvi faixa, não recebi comunicado. Esta é pura especulação filosófica íntima, exercício de imaginação crítica — mas tudo ao redor, a música que ele traz, o modo como articula as palavras, a energia com que pisa no palco, converge para essa possibilidade inventada que, no entanto, me parece inevitável. E a convergência faz sentido, sobretudo quando me recordo de sua trilogia fundamental: Refazenda, Refavela, Realce. Três álbuns que transcenderam a condição de meros discos para se tornarem movimentos internos, geografias íntimas, recomeços disfarçados de canções. Agora, Repouso surgiria, no meu delírio embasado, como uma vírgula mais longa na frase de sua obra — talvez um respiro necessário, um epílogo-prelúdio.
E, como tudo em Gil, esse repouso não admite leituras simplificadas e resgata uma história que ele próprio já narrou recentemente no Conversa com Bial: em 1980, cogitou seriamente abandonar a composição e o canto. Estava dominado por um fastio existencial e artístico — queria pausar e talvez, quem sabe, pousar definitivamente. Mas então — num gesto que poderia ter saído de um koan zen ou de uma comédia cósmica — uma voz interior lhe sussurrou: “Então faça uma música sobre isso.” E ele fez. Palco! A canção tornou-se um dos maiores sucessos de sua carreira, composição atemporal que fala precisamente sobre estar, com o corpo e a alma, entregue à arte. O mais belo — ou irônico — é que Palco é justamente a música que abre esta turnê de despedida, como se o círculo se fechasse revelando não um fim, mas uma espiral.
Deguste-se a peculiaridade: ele desejou parar e acabou compondo uma canção que tornava a pausa impossível. Como se o anseio pelo silêncio tivesse parido o próprio som, como se a vontade de recolhimento gerasse, paradoxalmente, o movimento. Talvez Palco seja um dos exemplos mais eloquentes de que, na obra de Gil, os finais são apenas outras modalidades de caminhar, outras maneiras de se deixar pousar.
Essa reflexão me trouxe de volta uma imagem que o próprio compartilhou, frase que poderia muito bem figurar como haikai baiano, aforismo zen temperado com dendê: “Sou como um pássaro que pousa num galho de árvore que desce um rio.” A sentença contém toda uma filosofia de estar no mundo. Estar parado, mas em movimento. Repousar não como fixação, mas como aceitação da fluidez do galho, da correnteza inexorável do tempo. É o contrário da estagnação — é sabedoria.
Talvez esse seja o sentido mais profundo de Repouso: não parar, mas pousar novamente. Re-pousar. É possível que Gil esteja se permitindo pousar num galho diverso, num rio que não conhecia, ou — como fazem os sábios — no mesmo lugar de sempre, mas com olhos renovados. É uma volta que não retorna, um ciclo que não se repete. É o mesmo galho, mas agora ele canta de outro modo.
E talvez eu esteja aprendendo com ele a encontrar esse lugar — escrever aqui, neste espaço novo, pode ser meu próprio repouso, não como encerramento, mas como estado de escuta. A partir de agora, convido quem me lê a caminhar neste ritmo: um passo depois do outro, às vezes com asas, outras vezes com silêncio. Que saibamos pousar, sempre que for tempo.
Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”. A partir desta quarta (25/06), ele é colaborador da coluna com assuntos do cotidiano.