Rafael Dragaud: “O ‘homeless’, o cachorro e o robô, em Miami”
Toda vez que me aproximo da miséria humana, e o mundo está lotado dela, me obrigo a trazer alguma luz

Presenciei uma cena nas ruas de Miami que me chocou.
Poderia fazer literatura com ela, mas não tenho como — por ética.
Toda vez que me aproximo da miséria humana, e o mundo está lotado dela, me obrigo a trazer alguma luz.
Do contrário, estaria apenas explorando-a ainda mais.
Então eu deixo o vídeo falar por si.
E que cada um lide com ele com a consciência que tem.
Um robô de entrega: branco, limpinho, meio atrapalhado. Tentava passar entre duas barras de ferro na calçada.
Forçou, insistiu… E quase ficou preso.
O detalhe é que, ao lado das barras, havia um homem no chão, com seu cachorro.
E o robô não passava também por causa das patinhas do animal, que se esticavam no caminho.
E aí aconteceu o que eu não esperava.
O homem, um morador de rua, simplesmente recolheu as patinhas do cachorro pra deixar o robô passar.
Gentileza. Só isso. Um morador de rua e seu cachorro sendo gentis com um robô.
E claro… Dá pra fazer mil analogias, dá pra falar do futuro, do progresso, do emprego que se perdeu, do humano e da máquina.
Mas eu não quero.
Eu não tenho energia.
Eu tô cansado de pensar o tempo todo sobre o que vai ser amanhã, sobre o que vai ser domingo, sobre o que a gente tá fazendo com o mundo.
Cansado de buscar resposta pra tudo, como se todo gesto precisasse virar símbolo, metáfora, tese.
Então eu deixo só a cena.
Foi isso que eu vi.
E talvez baste.
Hoje, pra mim, basta.
Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.