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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Opinião, por Rafael Dragaud:”A dor está viva ali, mas a dignidade, também”

Em viagem ao Chile, uma visita inesquecível ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos

Por lu.lacerda
Atualizado em 23 jul 2025, 18h55 - Publicado em 23 jul 2025, 18h00
Museu da Memória e dos Direitos Humanos santiago
Museu da Memória e dos Direitos Humanos Santiago (./Divulgação)
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Tirei alguns dias de férias e escolhi, junto com minha mulher, que seguiríamos aprofundando nossa relação com a América Latina, projeto que empreendemos ao longo da última década, sempre que conseguimos escapar da correria de trabalho. Depois da Argentina, Peru e Uruguai, chegara a vez de conhecer o Chile. Muito pode — e deve — ser dito sobre esse país; talvez eu organize algo mais amplo e ambicioso em outra ocasião. Hoje, no entanto, quero me deter num momento específico vivido em Santiago: a visita ao Museu da Memória e dos Direitos Humanos.

Logo na entrada, antes mesmo da primeira sala, fui atravessado por um detalhe aparentemente banal: numa ecobag pendurada na lojinha de souvenir, lia-se em espanhol: “Un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro.” Para muitos, uma frase batida, não nego, mas, para mim, serviu como um sinal de que aquela visita não terminaria dentro do museu. Era como se o Chile me estendesse um espelho, e eu soubesse que, ao final, não sairia o mesmo.

O museu — que trata das violações de direitos humanos cometidas durante a ditadura chilena — não apresenta o passado como quem expõe relíquias em vitrines; ele não adota aquela linguagem fria das instituições que se escondem atrás da neutralidade. Cada parede, documento, gravação, fotografia escolhe um lugar ético: o das vítimas. Há ali o compromisso com o nome, o rosto, a história de quem sofreu, resistiu, desapareceu. O museu não diz “ambos os lados”. Ele diz “nunca mais”. A dor está viva ali, mas a dignidade, também.

À noite, já no hotel, durante o jantar, eu e minha mulher tentamos conversar sobre outras coisas, mas a conversa voltava, teimosa, para o museu. Em dado momento, ela me perguntou: “Por que não temos algo assim no Brasil, se nossa história é tão parecida?” E ali doeu. Porque a resposta é simples e brutal: o Brasil não fez o dever de casa. Não conseguiu. Preferiu virar a página sem ler. Optou por uma neutralidade que, diante de assuntos urgentes, não existe. Foi nesse instante que uma frase emergiu da minha memória com força: “Só as feridas lavadas cicatrizam.”

Mais tarde, no quarto do hotel, ao abrir o computador para começar a rascunhar esta coluna, a frase voltava com nitidez. Eu já a conhecia havia anos, mas, naquela noite, ela encontrou seu lugar, pois dizia exatamente o que eu, brasileiro de 1972, sentia. Fui procurar em que circunstância ela havia sido dita e, sim, eu estava certo: a frase surgiu quando Michelle Bachelet foi questionada, durante seu primeiro mandato como presidenta do Chile, sobre a necessidade de instaurar uma comissão da verdade. Um repórter, em tom cético, perguntou: “Mas por que mexer nessas feridas do passado?” E Bachelet, com a autoridade de quem não fala do alto, mas de dentro da dor, respondeu: “Porque as feridas precisam ser limpas para cicatrizar. Feridas sujas não cicatrizam.” Foi uma resposta que se tornou um marco porque não apenas justificava uma política pública, mas também desautorizava o esquecimento como estratégia de reconciliação.

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Naquele momento, compreendi que a frase está profundamente relacionada ao local que visitara e à trajetória de quem a disse. Michelle Bachelet foi presidente por dois mandatos, alta comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, e, antes de tudo isso, filha do general Alberto Bachelet, leal a Allende, preso e morto pelos próprios colegas de farda após o golpe de 1973. Michelle e sua mãe também foram presas e torturadas. Ela conhece por dentro a anatomia do terror de Estado — e talvez por isso tenha se tornado, com o tempo, uma das vozes mais veementes em defesa da memória como parte essencial da democracia.

E mais do que isso: foi ela, Michelle, a responsável política pela construção do museu que eu visitara naquela tarde — um prédio que não se faz com mármore e vidro, mas com coragem; um espaço que só se sustenta com a verdade. E, como sabemos, a verdade, muitas vezes, incomoda, provoca, confronta. Contudo, é só a partir dela que se pode, de fato, cicatrizar.

E foi aí que a pergunta inevitável se impôs: será que o Brasil lavou suas feridas? Tenho motivos de sobra para pensar que não; os dados mostram que não. Nenhum agente da repressão foi punido. Nenhum torturador foi levado a julgamento. E isso não foi acidente, foi escolha. A Lei da Anistia de 1979 blindou os culpados, apagou os rastros, congelou a memória. E como toda ferida que não é limpa, a nossa segue infeccionada — lateja nas abordagens policiais, nas ausências pedagógicas, na romantização da ditadura, nas violências cotidianas contra os mais vulneráveis. Nosso tecido social sangra em silêncio. Preferimos o esquecimento à verdade. O pacto da transição foi feito em cima de um silêncio — e o silêncio, como sabemos, é o solo fértil do retorno. O pus dessa ferida está justamente no apodrecimento do nosso processo eleitoral, que, décadas depois, volta a ser contaminado por antigos agentes da ditadura, agora reorganizados e requisitando a estatura que um dia tiveram — como se nunca tivessem sido responsabilizados por nada. E, de fato, não foram.

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Aquela noite em Santiago me ensinou que o Chile, mesmo ferido, optou por enfrentar. O Brasil preferiu fingir que nada aconteceu. Saí do museu com uma dor, mas também com inveja — de um país que decidiu contar sua história sem esconder os fantasmas. “Feridas sujas não cicatrizam”, disse Bachelet. E talvez, se quisermos mesmo algum futuro, seja hora de lavar a nossa  — porque um povo sem memória, como me alertou a ecobag singela, é um povo sem futuro. E o futuro do Brasil, por ora, caminha assombrado por fantasmas que nunca foram enfrentados de verdade.

Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.

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