Opinião, por Rafael Dragaud: “A democracia também se escreve com música”
O poder da música: de 1973 a 2025 — uma canção não muda o mundo sozinha, mas pode mudar as pessoas
O que, afinal, pode uma canção? Talvez nem mesmo quem a compõe, grava ou canta saiba responder. Eu, que não nasci com esse talento sagrado e nunca fiz nada disso, observo a deusa música com amor e admiração há mais de cinco décadas — e arrisco afirmar: entre silêncio e sons se escondem forças invisíveis, capazes de atravessar paredes, regimes, corações e gerações.
Uma questão, porém, ainda me intriga em especial: como é que uma melodia pode embalar crianças e, ao mesmo tempo, inquietar generais? Mesmo sem uma resposta definitiva, percebo nitidamente a ambivalência: onde uns reconhecem apenas poesia, outros identificam ameaça. Tudo indica que há algo que um regime autoritário teme mais do que armas: o coro afinado de uma multidão. E é por medo desse coro que tantas vezes tentaram nos silenciar.
O Arquivo Nacional guarda um número eloquente: 13.743 letras de músicas foram submetidas à censura entre 1964 e 1985. Esse é o tamanho do medo fardado diante da palavra cantada: o medo de uma arte que, ao unir corpo e voz, transforma festa em protesto e compasso em liberdade.
Em 1973, eu tinha apenas um ano de idade. Observava o mundo pelas grades do berço que não me prendiam — apenas me protegiam de uma queda involuntária. Do lado de fora, no entanto, as grades eram muito mais severas. Chico Buarque e Gilberto Gil já traduziam essa atmosfera em versos: a angústia do silêncio imposto, o sufocamento espesso como fumaça de óleo diesel. Era Cálice. Esse canto de oração e denúncia invocava o cálice bíblico e, no mesmo gesto sonoro, conjugava o verbo calar. Não por acaso, no imperativo. E não por acaso, foi proibido — interditaram a obra que falava sobre o ato de interditar.
O episódio tornou-se um marco que vale detalhar. Cálice havia sido composta para o Show Phono 73, previsto para maio daquele ano, no Palácio das Convenções do Anhembi, em São Paulo. Minutos antes da apresentação, os fiscais da censura vetaram a letra. Chico e Gil, em resposta, decidiram entoar apenas a melodia, repetindo em murmúrio a palavra “cálice”. Era um gesto de desobediência delicada. A reação foi imediata. Os censores, atônitos, desligaram os microfones um a um, até que o som se extinguisse no palco. Era o Brasil sob o general Emílio Médici: anos de chumbo, de torturas sistemáticas, de vigilância e de pavor.
Cinco anos mais tarde, em 1978, o país vivia os primeiros sinais de distensão. Ainda era ditadura, mas uma fresta começava a se abrir. Nesse contexto, Cálice pôde ser incluída no álbum que levava o nome de Chico, com Milton Nascimento interpretando os versos de Gil, que havia mudado de gravadora. O aval partiu de um órgão cujo nome beira o patético: a Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP), subordinada à Polícia Federal. E é evidente que há algo de perverso nesse eufemismo, como se mutilar canções e peças de teatro fosse o entretenimento do próprio Estado.
A partir dali, Cálice ganhou o peso de hino, memória de resistência e cicatriz sonora de um período sombrio. Décadas depois, a lucidez do tempo desfez a ditadura. Até que, em 2025, Gilberto Gil se viu diante do espelho de sua própria caminhada com a missão de escolher o repertório de sua última turnê, batizada Tempo Rei. Ao incluir a canção, decidiu voltar-se para a obra que jamais havia conseguido cantar em público. Em março, iniciaram-se os ensaios. Eu, agora com 53 anos, pude testemunhar de perto Gil reaprendendo nuances do seu próprio hino, descobrindo como suas cordas vocais reencontrariam aquela melodia tantas décadas depois. Como seu corpo, enfim, encarnaria no palco o peso e a liberdade de suas próprias palavras. Foi como se a história lhe cobrasse a devolução da voz interrompida. Vi Cálice renascer pelas mãos do próprio pai e parteiro: Gilberto Gil.
E em cada show, desde então, em arenas lotadas, o público de todo o Brasil passou a responder com um coro que não existe na letra original e que soa como julgamento reprimido: “Sem Anistia! Sem Anistia!”. Dessa forma, milhares de pessoas passaram a exigir justiça. Mas de quem, afinal, esse público estava falando? Dos crimes do regime militar que nunca foram julgados ou dos crimes recentes, já condenados, mas cujos autores se recusam a cumprir a pena? Talvez de ambos. Talvez de tudo o que, em diferentes tempos, insistiu em silenciar e violentar a democracia. Entre passado e presente, aquele grito traça uma linha de continuidade histórica: mostra que a memória é um instrumento de defesa coletiva. É esse eco, atravessando décadas, que transforma uma canção em mais do que arte: em memória ativa e convocação.
A turnê Tempo Rei me revelou a ironia sábia do tempo: não há como separar o palco do contexto em que ele se ergue. Regimes recentes, eleitos pela via democrática, trataram de desprezar a democracia que os legitimou e, uma vez no poder, tentaram desmontar o caminho construído pelo voto. A história, porém, não se dobra com a facilidade que os patifes desejam. Ela segue, como sempre seguiu: transformando, transcorrendo. E os que tentaram golpeá-la foram julgados e condenados — entre eles, o ex-presidente.
Agora, um Congresso hipócrita, indulgente diante de crimes que não poderiam ser relativizados, ameaça conceder anistia ampla e, ao fazê-lo, se colocar acima da própria lei. Foi nesse cenário que a música voltou a ocupar o espaço que lhe pertence: a rua. Copacabana, 21 de setembro de 2025. O dia mais quente do ano, como confirmaram a meteorologia e os espíritos. O sol ardia junto com o coração da multidão. Em cima de um trio elétrico, Chico, Gil e Caetano cantaram Cálice diante de uma massa humana à beira-mar. As imagens invadiram a internet e, quase em tempo real, provocaram ecos em outras cidades, em outros estados. O Brasil inteiro parecia reencontrar suas forças numa melodia silenciada. O que eu assisti naquele dia não foi apenas espetáculo: foi a prova viva de que a democracia também se escreve com música.
Poucos dias depois, a PEC da Blindagem caiu no Senado, derrotada na Comissão de Constituição e Justiça. Talvez aí esteja a resposta que buscamos desde a primeira linha: uma canção não muda o mundo sozinha, mas pode mudar as pessoas — e são as pessoas que mudam o mundo. Quando o canto se levanta, até o poder precisa dançar conforme a música.
Rafael Dragaud é roteirista, diretor do show da turnê “Tempo Rei”, de Gilberto Gil, trabalhou na Globo por mais ou menos 30 anos como diretor-executivo do núcleo de variedades da emissora, responsável por programas, como “Conversa com Bial”, “Mais Você”, “Encontro”, “É de Casa” e “Altas Horas”.
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