Opinião, por Luiza Mussnich (poeta): “Não paro de pensar em Gilberto Gil”
Por mais que não pratique nenhuma religião específica: não me falta fé ou crença em milagres e coisas mágicas

A morte está sempre nos rondando porque amamos a vida. Desde que tenho filhos, qualquer ideia de perda me parece ainda mais assustadora. Diante da possibilidade dessa anomalia, afirmo a vida com força, todos os dias, sempre que posso. Agradeço — ora unindo as mãos em prece, ora fechando os olhos, ou envolta em ervas e plantas — por mais que não pratique nenhuma religião específica: não me falta fé ou crença em milagres e coisas mágicas.
“Mistérios sempre hão de pintar por aí”, canta um dos maiores músicos de que se tem notícia. E nessas semanas, não paro de pensar em Gilberto Gil e todo o seu clã familiar de músicos, artistas, entusiastas da cultura e de um país em que também acredito. Não paro de questionar por que possa haver mistérios tão cruéis — há momentos em que precisamos de uma explicação, mesmo sabendo que ela não virá. E como encontrar paz no silêncio, no que não se diz, não se sabe?
“Se há órfão e viúvo, como se chama alguém que perde um filho?”, escrevi certa vez num poema. Um filho se ir antes de seus pais desrespeita a cronologia da vida, bagunça o mais elementar dos scripts. Não há título, não há dor, não há explicação satisfatória. Como, então, conceber que um pai possa perder dois filhos numa vida? É de abalar qualquer fé que um homem tenha de suportar tamanha violência duas vezes. Não segue as regras, não deveria ser permitido.
Fico me perguntando se há morte mais dolorida que outra. Peço licença para entrar em meandros tão delicados, subjetivos, carentes de explicação. Terá a circunstância ou o contexto de uma partida qualquer influência sobre a dor que ela provoca? Que a morte tome alguém que amamos seja por doença, seja por acidente, tem alguma relação com nossa maneira de sentir a perda?
O primeiro pensamento que me vem é que um acidente é um acaso cruel. Um acidente de carro, a queda de um avião, um assalto violento ou uma bala perdida são eventos tão randômicos quanto ganhar na loteria ou ter a cabeça acertada pelo alívio do pombo em pleno voo. Mas, por mais que a gente se cuide, uma doença pode vir impressa no nosso código genético, como a cor do olho, o formato dos pés. Ela é também um acaso cruel, que se manifesta fazendo o mundo desabar. A dor do tratamento pode se decantar por anos, meses. Pode-se ganhar da doença. Pode-se — sempre covardemente — ser derrotado por ela.
Gilberto Gil teve que atravessar esses dois terríveis tipos de acaso ao perder dois filhos num espaço de mais de 30 anos. Não me parece possível quantificar a dor, apontar como e onde dói mais e por quê. “Nenhum homem é uma ilha”, escreveu o poeta inglês John Donne, e o escritor israelense Amos Oz atualizou essa ideia, que tomo a liberdade de parafrasear aqui: somos penínsulas, com uma parte voltada para o continente, em que partilhamos cultura, valores, relações, afetos, e outra parte voltada para o mar, em que estamos imersos e sós com nossos pensamentos, dores, amores, traumas, ressentimentos, desejos, dúvidas. São muito íntimas as formas de receber e lidar com aquilo que nos acontece.
E não há noite em que, quando beijo meus filhos na hora de dormir, eu não pense em Gilberto Gil, em sua família e em todas as mães e pais que conheceram o maior horror de que a humanidade tem notícia. (Meu beijo carinhoso para Mara, Márcio, Miguel e Pata, em especial).
A carioca Luiza Mussnich é mestre em Literatura, Cultura e Contemporaneidade pela PUC-Rio e autora dos livros de poesia “Todo o resto é muito cedo” (Bazar do Tempo, 2024), “Tudo coisa da nossa cabeça” (7Letras, 2021) e “Lágrimas não caem no espaço” (7Letras, 2018). Ela publicou poemas em suplementos literários, como o jornal Rascunho e o caderno Pensar, do jornal Estado de Minas.