Opinião, por Cesar Oiticica: “O que o manto Tupinambá revela sobre o Br”
Já é hora de a Europa assumir sua dívida histórica pelas ações de extermínio cometidas ao longo dos séculos
Estamos na COP 30, desde segunda (10/11), no Pará — quando o Brasil é observado pelo mundo como potência socioambiental e guardião da maior floresta tropical do planeta.
Mas, antes de qualquer discurso verde, é preciso falar sobre o que sustenta verdadeiramente toda pauta ambiental séria: as populações originárias e a reparação histórica que ainda lhes é devida. Este é o momento de reafirmar a importância da devolução do manto sagrado aos Tupinambás, da Bahia, e da urgente demarcação de suas terras.
O manto — uma peça ritual feita de penas vermelhas de guará — foi saqueado da aldeia de Olivença, no sul da Bahia, por holandeses em 1645. Passou 386 anos no Museu Nacional da Dinamarca, até retornar ao Brasil graças à luta incansável do povo Tupinambá, iniciada nos anos 2000, quando a líder indígena Tupinambá Amotara reconheceu seu “ancestral” durante uma exposição em São Paulo.
É a primeira vez que um manto indígena é repatriado ao país — mas ainda existem outros 11 espalhados pelo mundo.
Desde 2023, venho documentando a trajetória do retorno deste manto ao Brasil e convivendo com os Tupinambás na aldeia de Olivença. Retornei no ano seguinte imaginando descanso, mas o que encontrei foi a história acontecendo diante dos meus olhos.
O diretor do Museu Nacional do Rio, Alexandre Kellner, esteve no território para explicar por que ocultou das lideranças Tupinambá a data da chegada do manto ao Brasil — pelo Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Rio. Segundo os indígenas, eles só souberam quatro dias depois que o manto já estava em território nacional, o que os impediu de realizar os rituais planejados. A justificativa oficial foi “atender ao pedido de sigilo solicitado pelo Museu da Dinamarca, por motivo de segurança”.
Para os Tupinambá, foi mais uma traição do homem branco. Naquele momento, percebi que o nosso filme documentário havia começado — um trabalho que divido com a liderança digital e ativista Jennyffer Tupinambá.
Em setembro de 2024, vivi outro encontro marcante com 200 indígenas Tupinambá, que vieram ao Rio para participar, enfim, da entrega simbólica do manto sagrado. Acompanhei seus passos pelo Centro, entre a Cinelândia e o metrô. Era 7 de setembro, e registrei a participação deles na Parada 7 — projeto que acontece anualmente na data da Independência, e que está em sua quarta edição.
Idealizada por mim e pelo professor Evandro Salles, ex-diretor artístico do MAR (Museu de Arte do Rio), a Parada 7 é um evento cultural e artístico em cortejo pelo centro da cidade, com artistas e o público em geral — fantasiados, portando estandartes, bandeiras e parangolés, ao som de batucadas, carimbó e fanfarras.
A participação dos Tupinambás foi histórica: representaram simbolicamente os primeiros habitantes do Brasil. Logo depois, os indígenas paramentados participaram da cerimônia oficial de entrega do manto no Museu Nacional. Autoridades discursaram, enaltecendo o gesto “louvável” da Dinamarca por “doar o manto ao Brasil”.
Mas não há doação possível quando algo foi roubado. O manto foi saqueado de seus donos legítimos — e seu destino certo é o território espiritual e histórico de onde saiu: a Bahia.
Foi nesse momento que o discurso corajoso e comovente da líder Yacuy Tupinambá ecoou, chamando “a atenção do Estado brasileiro para que cumpra seu papel constitucional e pare o genocídio em curso, praticado por uma organização criminosa chamada Invasão Zero — formada por grileiros, milicianos, pistoleiros, parte podre da polícia e o pior do agronegócio” (sic).
Testemunhei também o encontro dos Tupinambás com o presidente Lula, quando denunciaram a quebra de compromisso do Museu Nacional em ocultar o dia da chegada do manto sagrado.
A essa altura, os Tupinambás estavam exaustos — depois de dias na estrada, sem conforto, vindos de diferentes aldeias da Bahia.
Mais do que a devolução do manto, acredito que os governos da Dinamarca e do Brasil devem garantir as condições para que ele retorne ao seu território original, em Olivença.
Os dinamarqueses deveriam destinar recursos para a construção de um espaço adequado na aldeia, de onde o manto foi retirado — especialmente porque o próprio Museu Nacional ainda está em reconstrução após o incêndio causado pelo descaso do governo do ex-presidente Michel Temer.
Já é hora de a Europa assumir sua dívida histórica pelas ações de extermínio cometidas ao longo dos séculos — não só deste lado do Atlântico, mas em todo o planeta.
Que o manto Tupinambá seja o símbolo de reparação que falta: um gesto que, ainda que tardio, devolva ao povo Tupinambá um fragmento da dignidade que lhes foi tomada.
A COP 30 é uma oportunidade única para o Brasil mostrar que não há futuro ambiental sem justiça ancestral.
Cesar Oiticica Filho é artista plástico e cineasta, sobrinho de Hélio Oiticica e diretor artístico do Centro Municipal de Arte Hélio Oiticica e do Projeto Hélio Oiticica, mantido na casa onde morou o artista, no Jardim Botânico. É autor do livro “Hélio Oiticica: cartas 1962-1970”.
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