Opinião, por Ana Iencarelli, sobre PDL: “Maternidade não pode ser punição”
A vida dessas meninas não importa? Só a vida da fecundação de um óvulo importa?
Mais uma legalização da pena de morte, através do Projeto de Decreto Legislativo (PDL), que não é submetido a veto do presidente: muito bem armado. Escolhido o instituto preciso de poder absoluto, o nome PDL é autoexplicativo da posição perversa dos votantes, em disfarce de “defesa da vida”. Qual vida?
A Ciência, por constatação de campo, afirma que a gravidez na adolescência é fator de mortalidade. Se considerarmos que grande número das meninas que, estupradas, com resultado gravidez, têm menos de 12 anos; muitas ainda nem tiveram a primeira menstruação (sim, é possível engravidar mesmo sem ter menstruado, pois a ovulação pode acontecer antes); não desenvolveram os seios ainda, que são a primeira e fundamental fonte de alimentação de recém-nascidos, e, emocionalmente, ainda não saíram da infância, por que condená-las à morte?
Não me refiro somente à morte fisiológica, mas também à morte social, porquanto estudos apontam que mais da metade delas vão parar de estudar para encarar a maternidade. Como se tornar mãe sendo ainda criança?
Então, a vida dessas meninas não importa? Só a vida da fecundação de um óvulo importa? E, lembrando que, pela precariedade do corpo, esta geração de um embrião já se inicia, muitas vezes sem muita chance de se estruturar, mesmo do ponto de vista físico.
Supondo que a menina sobreviva, não morra durante a gestação como é tão frequente, será que é muito difícil de entender que uma bacia pélvica não consegue abrigar um outro ser? Será que é muito complicado entender que, nessa idade, dos 9 aos 14 anos, ocorre uma revolução na produção de hormônios para efetivar o crescimento do corpo da menina? Será que, se os seios ainda estão despontando, não há como produzir hormônios específicos da lactação? Será que o peso da menina poderá arcar com um peso que equivale a uns 30%, 40% desse peso ocupado por corpo do feto, líquido amniótico e anexos? Não mais que 2 neurônios são necessários para essas evidências.
E, será que a menina, tão imatura ainda, vai ser capaz de construir uma relação mãe-bebê saudável, livre das lembranças traumáticas dos estupros sofridos? Esta seria uma proeza incrível, porque a visão do bebê vai remetê-la sempre às cenas traumáticas. Assim, fica, praticamente, impossível que ela venha a cuidar com afeto e responsabilidade de uma criatura que carrega, inexoravelmente, todos esses sentimentos negativos.
Nesse ponto, aparecem aquelas vozes metidas a poéticas, que dizem: dá para a adoção. Estaremos patrocinando e incentivando o crime de abandono de bebê. A adoção, nessas circunstâncias, é um remendo para o crime de abandono.
Mas há um ponto: para mim, o mais grave. Esses estupros são, em sua maioria, cerca de 70% incestuosos. Esses bebês, no maior número, são filhos do avô materno, de um tio, de um padrasto que criou a menina, de um irmão mais velho, às vezes do avô materno. Qual a filiação que irá constar na Certidão de Nascimento? Já sei que logo vão me responder que é só não colocar: põe “pai desconhecido”. A mentira é sempre usada para ocultar o ilícito. Incesto é crime. Lembra? Como percorrer o processo de formação da identidade do bebê e da mãe que ainda não é adulta, portanto, ainda não completou o seu processo. Onde se compra o manual de instruções dessa mágica? Os 280 deputados homens e as as impressionantes 37 deputadas que votaram por essa aberração (foram 111 contra), esse PDL da Pedofilia, vão emitir uma cartilha?
Como cereja do bolo, uma normativa de proibição de campanhas de esclarecimento sobre o casamento de adultos com crianças. A Câmara, os ilustres deputados e deputadas têm ideia da bestialidade que consta nesse Decreto? Sim, a proposta é voltarmos ao estado subanimal, com meninas servas, em relações de subjugo. Hoje nós contabilizamos 34 mil meninas menores de 14 anos que estão em relação conjugal. Não votam, não têm carteira de habilitação, porque não são maduras para tal. Mas podem ser mães. É assim que cuidamos de nossas crianças? É com esse apreço? Vir ao mundo para crescer junto com uma mãe, ainda incapacitada para a maternagem saudável, debaixo da tutela e mando de um homem adulto?
Os números apontam para uma triste realidade que acompanho profissionalmente: tenho 52 anos de formada, sou psicanalista de criança e adolescente, e a violência contra a mulher e contra a criança só aumenta. A cada 6 minutos uma criança é abusada: menina e menino. Juridicamente, a nomenclatura diz “um estupro de vulnerável ocorre a cada 6 minutos”. A cada 6 horas uma mulher é assassinada: feminicídio.
Esse PDL parece estar dirigindo um ataque à maternidade. É, no mínimo curioso, que homens — e quase só homens — em 1940 eram humanos o suficiente para proteger as meninas que eram estupradas, tendo resultado em gravidez. Está na Constituição de 1940 e foi transposto para nossa Constituição de 1988. Mas isso parece que se perdeu e deu lugar ao discurso pseudo religioso que tem um porta estandarte onde escreveram “somos pela vida”. Mas, e a vida da menina? Não importa? Gostaria de deixar registrado que sou religiosa; sei que é difícil conjugar mandamentos e ética, Evangelhos e saúde, sem ranço de fundamentalismo. Mas não é impossível. Sigo buscando a proteção de crianças e adolescentes, hoje tão desamparados.
Precisamos falar mais de estupro intrafamiliar de vulnerável antes de condenar à morte uma menina de 10, 12 anos. Precisamos refletir mais sobre a garantia do aborto legal e seguro para essas meninas. Se preferirem, podem chamar de interrupção da gravidez. Isso não quer dizer que sejamos a favor da liberação irrestrita do aborto. Também devemos discutir, mas neste momento, trata-se da manutenção do Direito, de uma lei que está escrita na Constituição Federal, que tem o olhar no Direito à vida de meninas e mulheres em três, somente três situações específicas.
Esse é um problema social gravíssimo. Não cuidamos de nossas crianças. Não temos responsabilidade pelo cumprimento da Lei, do ECA. Por que essas meninas todas, o número é enorme, são estupradas? Onde estávamos enquanto um predador incestuoso as violentava? A maternidade não pode ser uma punição. O estupro sofrido não foi consentido. Entende?
Ana Maria Iencarelli é psicanalista de crianças e adolescentes, presidente da ONG Vozes de Anjos e ex-presidente da Abrapia (Associação Brasileira Multiprofissional de Proteção à Infância e à Adolescência). É formada há mais de 40 anos e pós-graduada pela Sorbonne. É coautora dos livros: “Cuidado e Vulnerabilidade” (2009), “Vida, Morte e Dignidade Humana” (2010) e “Cuidado e Responsabilidade” (2011); e autora do livro: “Abuso Sexual, uma tatuagem na alma de meninos e meninas” (2013).
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