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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

“Invertida”, com Silviano Santiago: “Estou sempre pondo a mim em perigo”

Ao saber-se vencedor do Prêmio Camões, em 2022, disse: “O reconhecimento fortalece. É a garantia de que não estou tão errado no meu caminho”

Por lu.lacerda
29 jun 2025, 07h00
Silviano Santiago
 (./Divulgação)
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O mineiro-carioca Silviano Santiago, por muitos considerado um patrimônio da cultura brasileira, com a vida inteira dedicada à Literatura, cujos livros foram recentemente objeto da tese do professor Karl Posso na Universidade de  Cambridge, foi convidado para a Feira Literária de Oeiras, em Portugal, dia 26 de julho. “Mil rosas roubadas”, um dos seus inúmeros livros, será lançado naquele país. Até aqui, aos 88 anos, a trajetória de Silviano foi como autor, com dedicação desde 1954, quando começou a escrever para uma revista de cinema, ainda em BH, bem antes de se mudar para o Rio e de rodar o mundo. É doutor pela  Sorbonne, ex-professor universitário na Europa, nos Estados Unidos e em universidades brasileiras, como a PUC-RJ.

Ao saber-se vencedor do Prêmio Camões, em 2022, recebido por ele em novembro do ano passado, disse a esta coluna: “O reconhecimento fortalece. É a garantia de que não estou tão errado no meu caminho”, sempre vibrante, com a curiosidade em alta. Sobre triunfo,  não pode queixar-se: com mais de 30 livros publicados, além do Camões, já ganhou o Oceanos, Machado de Assis, Casa das Américas e Faz Diferença,  além de três Jabutis.

Leia sua entrevista: 

UMA LOUCURA: Tantas e tão variadas foram as loucuras e em lugares tão diversos que a mera listagem encheria uma página. Escolho uma delas por ser a mais linda e a mais miserável: a longuíssima viagem em verde e azul, no ano de 1963, atravessando, em ônibus das antigas, a Sierra Madre Ocidental, no  México. Cinco dias e quatro noites. Viajo de Durango, no centro do México, a  Mazatlán, na costa do Pacífico. Em curvas infinitas, subo no verde da selva até  3 mil metros de altitude; desço 3 mil metros no horizonte azul do oceano Pacífico até o nível do mar, entrecote as horas e os dias com pozole (sopa de  milho asteca), frijoles, tacos e enchiladas; não tomar banho, comer em pratos esmaltados brancos com azinhavre, garfos e colheres enferrujados, água não se sabe se de torneira ou de nascente.

UMA ROUBADA: Ter acreditado que valeria a pena ir à ilha de Capri, sem ser diplomata com pedigree aristocrático ou amigo da família Krupp. Uma roubada.  Nada a ver com o que tinha lido no livro “Exilados de Capri”, do diplomata francês Roger Peyrefitte, e tantos outros romances. Tomei a Cantareira deles de Nápoles até Capri, para me estender ao sol, numa praia sem graça. Deveria ter ficado em Nápoles mais tempo e refeito o roteiro do filme “Viagem à Itália”, de Rosselini; ter ido duas vezes a Pompeia, com direito a mais horas no Museu Arqueológico. Experiências deslumbrantes.

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UMA VERDADE ALHEIA: Escolho uma reflexão do grande historiador Carlos Ginzburg: “A palavra ficção vem do latim, fictio, que se referia ao ato do oleiro de modelar argila; depois foi usada para nomear um gênero literário, a ficção. Na origem ficção, tem a ver com manipulação, mas ficção não é falsidade.  Robinson Crusoé não é mentira, é ficção; já as fake news são ficções que se apresentam como verdadeiras, logo, são falsas. Os historiadores, como Marc Bloch em “Reflexões sobre as notícias falsas da guerra”, podem trabalhar com a mentira e a ficção para extrair delas algo que está além da intenção dos autores”.

UMA IDEIA FIXA: De fixo, no meu cotidiano, só tenho as camisas nos cabides. As ideias são como bolinhas de mercúrio na mesa: mal toco a bolinha/ideia, e  ela já me escapa por entre os dedos e vira miragem no deserto de Saara (aviso: deserto de Saara é metáfora para folha de papel em branco). De ideia fixa propriamente, só tenho umas coisas em movimento, feitas por outras pessoas: cenas de filme ou de peça de teatro; passagens de romance; alguns versos de  poemas. Elas e eles vão e voltam no meu cotidiano, com certa malemolência e rigidez cadavérica — são ideias fixas armazenadas na memória. Acidentalmente, ganharam força para se imprimirem lá dentro da cuca. São restos fixos de pura  emoção.

UM PORRE: Na Praça Raul Soares, aos 20 anos, em Belo Horizonte. O Maurício Gomes Leite tinha chegado da Europa com um toca-discos de pilha (total novidade) e poucos LPs com trilhas sonoras de filmes. Era proibido escutar música nos bares que frequentávamos. Um grupo de amigos e amigas, fomos para a Praça Raul Soares e montamos barraca no círculo interno da fonte luminosa. A trilha sonora de “Dolce Vita”, o filme de Fellini, era imperdível; Nino Rota a todo o vapor e passeando por todos os ritmos. Compramos duas garrafas de gin, copos de plástico e ficamos até altas horas conversando e tomando gin puro. Eu não sabia que era alérgico. Foi um porre  homérico. Até hoje, é o único em que termino desmaiado.

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 UMA FRUSTRAÇÃO: A recente pandemia frustrou muitos dos meus melhores planos para a velhice. Já aposentado, tinha conseguido desenhar alguns projetos que iam sendo tocados satisfatoriamente. Fiz as primeiras longas viagens sozinho de férias de toda a minha vida; de repente, nocaute no quinto round.

UM APAGÃO: Não me lembro com clareza da primeira crise de hipertensão que sofri, com sangue escorrendo enlouquecidamente pelo nariz. Tento recapitular os detalhes, mas não consigo – vem à mente a experiência do dia seguinte, que me levou ao médico em busca de diagnóstico. Ele pediu que eu ficasse sentado enquanto ele ia à farmácia comprar o remédio. Não levantasse. As  imagens do dia anterior ao da consulta se repetem na generalidade e não se enriquecem, só se desgastam. Não consigo me agarrar à solidão da noite em crise seriíssima de hipertensão.

UMA SÍNDROME: Não sei como classificá-la: síndrome da repetição, da correção, da fatalidade da insatisfação… Sei como descrevê-la: nunca fico satisfeito com o que faço. Refaço, luto, me desavenho comigo, corrijo e continuo insatisfeito. É a melhor imagem que conheço para o mecanismo a que dariam o nome de moto-perpétuo. Estou sempre pondo a mim em perigo.

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UM MEDO: Um medo: “o” medo — de doença. Moro sozinho, óbvio.

UM DEFEITO: Detectá-los é a minha especialidade. A timidez teria sido o maior defeito se ela não me tivesse empurrado para a solidão criativa da biblioteca e da máquina de escrever. Se detecto os defeitos à perfeição, também tenho conseguido tirar partido deles. Aprendi a lição com André Gide e Albert Camus: não é pela raiz que se corta o mal. Há que aprender como melhor cultivá-lo, como cuidá-lo com alguma sabedoria. Até que ele, no leito de morte, seja cortado pela raiz.

UM DESPRAZER: Estava sozinho à noite, esperando o metrô da linha 1 numa estação na Sétima Avenida, no Village (NY), quando uma pessoa passou correndo pelas minhas costas. De repente, ela (não sei se homem ou mulher) me empurrou e me jogou à linha do trem. Fui imediatamente salvo pelas boas almas anônimas, que me tiraram lá do fundo do buraco. Roupas e mãos manchadas de óleo; por sorte, não quebrei perna nem braço, só escoriações nos cotovelos e nos joelhos.

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UM INSUCESSO: Não ter conseguido ser um nadador infanto-juvenil. Vizinho da antiga sede do Atlético Mineiro, na Olegário Maciel, comecei a frequentar a piscina como sócio-atleta. Tentei nado de peito: um fracasso, meu salto era um  desastre. Fui para o nado de costas: começava já na água, dependurado na  calha – pior. Consegui ter os ombros abertos pela academia de ginástica, o que  é bastante para o mineiro, mas não o suficiente para dizer que fui um sucesso juvenil na natação.

UM IMPULSO: Como tímido, não tive impulsos na vida. É bom que se diga: a timidez não “controla” o impulso; ela nem chega a abrir a porta que lhe dá acesso. O tímido fica à soleira da porta do impulso e vira caramujo. Só a raiva, fruto de rebeldia, é que me abriu gestos súbitos e até frenéticos, que geram  impulso. Neste caso, o impulso teria sido o prolongamento do sentimento de raiva diante do leão-de-chácara que não me deixou entrar num clube noturno. Perdi as estribeiras bobamente.

UMA PARANOIA: Ao fumar maconha.

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