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Lu Lacerda

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Jornalista apaixonada pelo Rio

Heleninha não está só: psicanalista comenta aumento de consumo de álcool

Psicanalista Fernando Scarpa, especialista em dependência química, fala sobre o assunto

Por lu.lacerda
Atualizado em 13 ago 2025, 16h46 - Publicado em 13 ago 2025, 11h07
Cena de "Vale Tudo" em uma das recaídas de Heleninha, personagem de Paolla Oliveira
Cena de "Vale Tudo" em uma das recaídas de Heleninha, personagem de Paolla Oliveira  (./TV Globo)
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Elas estão bebendo mais — e bem além de emborcar umas tacinhas sociais! Um levantamento da Revista Brasileira de Epidemiologia mostra que o consumo abusivo de álcool entre mulheres nas capitais mais que dobrou em menos de duas décadas: de 7,7% em 2006 para 15,2% em 2023.

A pesquisa, assinada por especialistas da UFMG, da ACT Promoção da Saúde e do Ministério da Saúde, analisou mais de 800 mil entrevistas. Para os autores, essa alta tem dedo de estratégias de marketing direcionadas e da influência das redes sociais, que não apenas normalizam, mas também,  muitas vezes, glamourizam o hábito de beber.

Enquanto os homens mantiveram índices estáveis (em volta de 25%), elas aparecem cada vez mais nas estatísticas de exagero — definido como quatro ou mais doses numa única ocasião.

Na ficção, o tema está em “Vale Tudo”, novela das nove da TV Globo, com a personagem Heleninha (Paolla Oliveira), que usa a bebida como fuga para lidar com a pressão familiar, a ausência de afeto materno e outras feridas emocionais em que tudo é motivo para abrir a garrafa. O drama é antigo: o estudo abrange 20 anos, mas a primeira versão da novela estreou há 37.

Como diz a OMS, em editorial publicado na “The Lancet”, prestigiada revista científica inglesa, “Não existe nível de consumo de álcool que seja seguro à saúde”, frase que viralizou entre nutricionistas nas redes.

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A coluna conversou com o psicanalista Fernando Scarpa, especialista em dependência química, sobre o assunto.

1 — O estudo mostra que o consumo abusivo de álcool quase dobrou entre mulheres entre 2006 e 2023. O que explica esse crescimento?

Durante a pandemia, o confinamento e a angústia diante do risco de morte aumentaram o consumo. Mas as causas são múltiplas e pessoais: a falta de vínculos afetivos consistentes, relações superficiais, insatisfação amorosa, pressões no trabalho, instabilidade financeira, insegurança nas ruas etc., tudo isso tensiona. O álcool, nesse cenário, funciona como um anestésico da alma: ele euforiza e colore a vida, mas também leva ao fundo do poço. Para manter o bem-estar e escapar da ressaca emocional, a pessoa recorre a mais doses — e assim o alcoolismo se instala. O crescimento acompanha, proporcionalmente, o aumento da tensão cotidiana. Hoje, as mulheres se sentem tão à vontade quanto os homens para erguer um copo — ou uma garrafa.

2 — Qual a diferença entre dependência química e “uso problemático”? Como perceber o limite?

O “uso problemático” é a antessala do alcoolismo. A pessoa geralmente nega, mas quem está por perto percebe: falas repetidas, esquecimentos, quedas… situações que geram vergonha no dia seguinte. Mesmo assim, ela volta a beber para buscar prazer rápido — e encontra o caos. Não há dose que sacie.

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3 — Como oferecer apoio sem julgar ou isolar?

O alcoolismo só foi reconhecido como doença pela OMS na década de 1960. A negação é comum (“eu consigo beber com controle”), mas o caminho é deixar claro que se trata de uma doença evolutiva que exige tratamento. Apoio não é facilitar o consumo nem humilhar, e sim acompanhar de perto, identificar gatilhos e ajudar a construir novas fontes de prazer. A abstinência é um processo com possíveis recaídas. O AA (Alcoólicos Anônimos) pode funcionar para alguns; não para todos. A ida a um psiquiatra pode ser necessário junto com acompanhamento psicológico e atividade física. Tudo pode ser capitalizado pela doença para justificar o uso do álcool. Produzir culpa e isolamento só agrava o quadro. Entendo que um bom caminho e estratégia pode ser levá-lo a elaborar o luto pelo “bem-estar”, que precisamos admitir o que o alcoolista sente com o beber. Sim, essa é a dificuldade: abrir mão do recurso simples, do prazer rápido do alívio das angústias através do álcool. É a saída que não sai, o recurso que não resolve. O sintoma está no lugar de algo que o sujeito deveria estar fazendo, e não faz. O que deveria fazer? Construir sua abstinência e se dar conta de que existe alegria fora do alcoolismo – explorar o viver e construir novas práticas, rompendo velhos padrões e rituais diários

4 — E no caso de Heleninha, vai bem o tratamento dado ao tema? O que fazer no caso de uma mulher tão frágil e que vê no álcool uma válvula de escape? Quais os tratamentos mais eficazes? Na vida real, quais são os desafios emocionais mais marcantes para quem tenta se manter longe da bebida, mesmo por curtos períodos?

Embora não acompanhe com frequência, conheço a história e, pelo que vejo em alguns capítulos, considero o quadro bem retratado. Uma mulher rica, supersaciada, mas insatisfeita com a vida. Imatura, com baixa resistência à frustração, ela busca no álcool o alívio imediato. Namora a ideia da abstinência, mas sucumbe ainda em momentos tensos.Em relação ao tratamento mais eficaz, ele será o que melhor o paciente responder, respeitando a sua história e singularidade. Claro que terapia e atividade física são fundamentais. É importante entender que parar de beber, construir uma abstinência, não se restringe somente a parar de ingerir álcool – o processo envolve mudança de vida, novos hábitos, e evitar lugares e pessoas ajuda muito. Cultivar a decisão de parar de beber em prol de uma vida saudável, se apaixonar pela decisão.

5 — Faltam políticas públicas para mulheres alcoólatras?

Sim, faltam políticas públicas mais divulgadas para atendimento de mulheres atingidas pelo alcoolismo – isso é fato. Uma questão fundamental nos tratamentos de ingestão violenta de álcool é que, enquanto o sujeito não quiser parar, desejar parar, dificilmente isso vai acontecer. Você pode desejar que ele pare de beber, mas não pode desejar por ele. O desejo tem que ser dele, e não por mais ninguém. Ele, sim, deve ser o sujeito do seu desejo.

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