Entrevista com a psicanalista Ticiana Porto sobre psicodélicos
"É preciso ter cautela quando uma celebridade traz o tema de psicodélicos como prática, porque o tratamento clínico nada tem a ver com modismo"
Ticiana Porto é psicanalista de orientação lacaniana, clinica desde 2003, no Rio e em São Paulo, onde mora. Desde 2020, desenvolve a Clínica de Integração com Psilocibina, com mais 300 atendimentos realizados. Nessa altura, Rick Doblin, fundador da MAPS (Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies) já estava com seus estudos em curso há anos, mas foi Roland Griffiths, um psicofarmacologista americano da Johns Hopkins, quem lhe chamou atenção, com estudos sobre a psilocibina.
Ele fundou o Centro de Pesquisa Psicodélica e da Consciência e foi um dos pioneiros nessas pesquisas: “Isso me levou a desenvolver essa clínica, partindo da minha experimentação pessoal. Um ano depois, eu tinha total clareza quanto ao alcance dessa substância, tão generosa e revolucionária, que estava redimensionando a minha própria clínica”, diz ela, afirmando ainda que o Rio e a escuta de analisandos — insatisfeitos com a medicina alopática comum à psiquiatria — aceleraram o desenvolvimento da sua metodologia.
Leia sua entrevista:
1 – Como começou sua história com os psicodélicos e por quê?
Começou como pesquisa em 2016, quando recebemos notícias nas publicações de artigos científicos e de livros falando do ressurgimento dos psicodélicos, agora pensados a partir de um contexto terapêutico. Isso no mesmo momento em que percebo uma demanda crescente na minha clínica, vinda de analisandos insatisfeitos com os tratamentos alopáticos psiquiátricos tradicionais.
2 – Explique aos leigos como acontece a indicação, o tratamento e por que existe resistência tanto das pessoas como da comunidade científica.
Esse trabalho é muito sofisticado, por isso a indicação é para dois grupos: aqueles que já tentaram diferentes tratamentos e não encontraram avanço ou para aqueles que já iniciaram uma busca por autoconhecimento e desenvolvimento pessoal, partindo de práticas sutis e integrativas.
3 – Qual é o atual panorama da ciência psicodélica no Brasil e de suas aplicações na área da saúde mental?
Hoje estamos avançando muito nesse tema. Neste ano de 2024, tivemos o primeiro congresso que reuniu conselhos regionais de Psicologia, trazendo o debate sobre o uso de psicodélicos para fins terapêuticos. Ao mesmo tempo, temos o Instituto do Cérebro (UFRN), com as pesquisas recentes do físico e neurocientista Dráulio Araújo avançando nas respostas terapêuticas quanto ao DMT e outros psicodélicos.
4 – Psicodélicos são pra qualquer pessoa? Como saber, como indicar a aplicação? Nomes, como Gisele Bündchen, por exemplo, afirmaram consumir cogumelos para ganhos de vitalidade e autoconhecimento…
Para uma boa anamnese, é fundamental a escuta de um psicólogo e/ou psicanalista experimentados. Isso porque casos de psicose ou despersonalização seguidos de internação não são indicados para o trabalho com psicodélicos. É preciso ter cautela quando uma celebridade traz esse tema como prática, justo porque isso pode sugestionar em larga escala e gerar uma tendência, quando o que estamos desenvolvendo é um tratamento clínico — baseado em evidências de longo prazo — que nada tem a ver com modismo ou tendência passageira.
5 – Desde 2020, você pesquisa em sua Clínica da Integração em Psilocibina, com relatos de pacientes. A partir daí, o que descobriu: se existe um caso específico a destacar e pra quem funciona sua aplicação?
Tenho recolhido relatos de mudanças subjetivas significativas na minha clínica. A psilocibina é uma sustância generosa por interagir com outras químicas; por isso, ser tão indicada para casos de adição com álcool e outras drogas, como tabaco e tantas que geram dependências psicológica e física. Além disso, a psilocibina é muito indicada para tratamentos de TDAH e TEPT em adultos. Indo na direção dos transtornos de ansiedade e depressão resistente, a psilocibina também apresenta respostas de eficácia e eficiência que reconheço nos casos atendidos, além do que está descrito em artigos científicos, seguramente nesses últimos cinco anos.
6 – Em que tipo de quadro os psicodélicos podem ajudar? Para quais casos é indicado? Você acredita que o tratamento é uma, digamos, volta às raízes, já que os povos indígenas usam psicodélicos de diversas maneiras: como medicina, sacramento religioso ou instrumento de exploração de diferentes dimensões da consciência?
Sim, o tratamento com psicodélicos pode ser um retorno às experiências dos povos originários pelo fato de, em todas as experiências, colocar-se uma dimensão do inominável — daquilo que ultrapassa uma percepção do eu e vai ao encontro do outro, enquanto alteridades de si. Esse momento da experiência poderia se aproximar dos relatos que temos desses povos, quanto à magnitude desse encontro.
7- Atuando no Rio e em São Paulo, você teria como medir a adesão em cada cidade?
Sim, atuo no Rio e em São Paulo. Sinto que existe um trabalho complementar tanto numa cidade quanto na outra. Se, no Rio, é o apelo do “setting” (a beleza natural da cidade) que facilita a busca por um trabalho também atento ao contexto do espaço, onde a experiência vai se dar, em São Paulo, é o “mindset” (o objetivo do que se quer alcançar) que determina por que fazer um tratamento desse. Posso dizer que atualmente estou com a demanda equilibrada tanto numa cidade como na outra.
8 – Qual a maior dificuldade de aplicação? Há preconceitos em relação a substâncias? Quais? Como anda a dificuldade de aprovação de alguns desses protocolos terapêuticos por órgãos regulatórios?
A maior dificuldade é quando a pessoa quer dirigir a experiência. Existe um primeiro momento todo dedicado a sensibilizar esse desprendimento; ainda assim, podem existir aqueles que não se permitem ir e viver simplesmente. As dificuldades quanto aos preconceitos seguem existindo, apesar de muita informação desde 2015, no sentido de elucidar a diferença de um contexto recreativo de um contexto terapêutico. Segundo o que tenho acompanhado, percebo que a dificuldade de aprovação de alguns desses protocolos terapêuticos por órgãos regulatórios é maior para substâncias sintetizadas em laboratório a partir de combinações, muito embora ainda exista resistência para psilocibina e psicodélicos derivados de plantas, fora de contexto religiosos. Percebemos, nesse caso, o peso de uma dimensão moral ainda maior sobrepondo a dimensão da cura, nos contextos científico e clínico.
9 – Existem muitos picaretas nesse mercado? Como a pessoa interessada pode ter certeza de que é um profissional respeitado? Em uma rápida busca na Internet, é possível encontrar muitos sites que anunciam a venda de cogumelos do tipo Psilocybe cubensis, apelidados de “cogumelos mágicos” no Brasil, por exemplo.
Muito importante trazer esse tema e que deve ser, cada vez mais, levado para discussão. De fato, uma vez que estamos falando de uma possibilidade terapêutica com o uso de uma substância externa, surgem os oportunistas, ou seja, fornecedores com produtos de baixa qualidade que facilitam falsos terapeutas. Isso gera o pior cenário. Por essa razão, é que se deve partir de um terapeuta, psicólogo ou psicanalista com tempo de clinica, conhecido na comunidade e que seja indicado por sua clínica de acompanhamento de experiências com psicodélicos. Além disso, é preciso saber quais as suas referências nessa clínica. Toda a minha formação, supervisão, estudo teórico e prática se deram no Rio. Clinico desde 2003, mas, só em 2016, foi que comecei minha pesquisa com psicodélicos, mais especificamente, com a psilocibina, tendo como referência Roland Griffiths.
10 – Para as pessoas que estão interessadas em conhecer o tratamento, quais leitura, filme, série ou nomes você sugere?
Para voltar um pouco mais, sugiro toda a literatura e trajetória de Paul Stamets, assim como Terence Mckenna. Para uma leitura mais atual, a investigação feita por Michael Pollan, que se transformou em livro e que deu origem à série de mesmo nome do Netflix, “Como mudar sua mente”.
11 – Pelos recentes estudos, você acredita que o Brasil vai evoluir no assunto? Discute-se, cada vez mais, o uso das substâncias psicodélicas para cuidados paliativos em portadores de doenças graves tanto em problemas físicos quanto em questões existenciais. Um dos recentes é o da Imperial College London, sobre como os alucinógenos tiram uma pessoa deprimida “de uma rotina de pensamento negativo” e como a psilocibina “reintegra” um cérebro deprimido, tornando-o mais fluido, flexível e conectado. O que diz sobre isso?
Sem dúvida, o Brasil vai evoluir assim como caminhar ao lado do que está sendo mais permeável em termos de pesquisas científicas; observo resultados de profissionais da saúde mental desenvolvendo essa nova clínica. Do que tenho acompanhado, percebo resultados em pacientes oncológicos em estágio mais comprometido e em pacientes sob cuidados paliativos — o tratamento com psilocibina tem uma resposta muito positiva quanto à qualidade do tempo presente e perspectiva de finitude. No tocante aos casos de depressão muito aguda e resistente, a psilocibina pode provocar um deslocamento naquele quadro fixo e, portanto, rearranjar afetos e pensamentos ligados a eles. Isso sim, pode gerar uma reorganização interessante. É nesse sentido que falamos de reintegração, uma vez que existe um trabalho de acompanhamento e elaboração num tratamento em curso.