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Lu Lacerda

Por Lu Lacerda Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Jornalista apaixonada pelo Rio

Entrevista com a artista plástica Rose Klabin

 “Tudo que a gente faz com entrega, física ou emocionalmente, proporciona prazer”

Por lu.lacerda
8 dez 2024, 07h30
rose
 (Divulgação/Divulgação)
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Em 2019, a artista plástica Rose Klabin foi tema de um livro com seu nome, organizado por Douglas de Freitas, com registros de diferentes momentos do seu trabalho. De lá pra cá, a carioca tirou “férias” das artes plásticas para cair em outra arte, a gastronomia. Fez cursos no Le Cordon Bleu, já com intenção, desejo e sentimento voltados para o livro “Desreceitas – dez processos artísticos” (Martins Fontes), com o curador Rodrigo Villela, lançado recentemente.

Na publicação, processos criativos relacionando arte e gastronomia (que não deixa de ser um tipo fascinante de arte) em múltiplos caminhos e conexões com artistas de diferentes gerações e linguagens. Cada um elabora um prato de sua escolha, no ateliê, na cozinha ou em outros cenários, e encontra outra pessoa de área do conhecimento e trajetória completamente diferentes, como psicólogos, agricultores, poetas, designers, cineastas e chefs, com longas conversas enquanto cozinhavam. Tudo termina no prazer à mesa.

Várias possibilidades já se abriram para a artista: ela foi chamada para fazer algumas performances junto com os participantes, incorporando as receitas e, ainda, para dar um curso sobre processos criativos entre a cozinha e o atelier. E, como o formato é muito plástico, deve brevemente virar um programa em algum streaming ou TV, haja vista incluir projeto gráfico de Luciana Facchini, registros do fotógrafo Matthieu Rougé e conversas gravadas e transformadas em textos editados pelo curador e pesquisador Tálisson Melo.

No conteúdo, Klabin e nove artistas mostram, cada qual, seu processo entre criação e gastronomia: Ayrson Heráclito, Débora Bolzsoni, Heloísa Hariadne, Marcos Chaves, Maria Klabin, Moisés Patrício, Nati Canto, Nazareno e Sonia Gomes. Outros convidados estiveram presentes: a psicanalista Maria Homem, o cineasta Guilherme Coelho, a escritora Luiza Mussnich, a historiadora e cantora Rosa Couto, o produtor de orgânicos David Ralitera, a arquiteta e designer Karol Suguikawa e Gisela Schmitt, Felipe Ribenboim e Solange Borges, estes três últimos, experts em gastronomia.

1 – Desde quando e de onde vem seu interesse pela gastronomia?

Foi um processo longo de pesquisa, falando sobre meus dois interesses, arte e gastronomia, que fazem parte da minha vida desde sempre. São encontros em que se fala mais sobre os processos de outros artistas do que de mim mesma. A cozinha e o ateliê acabaram se desdobrando e indo para outros lugares também, porque são conversas muito fluidas, que tocam em memórias afetivas, de infância e até em questões políticas. Minha pesquisa artística e a relação com alimentação se entrelaçam de forma muito relevante e significativa. Como artista, sempre explorei muitas questões ligadas ao corpo e acredito que o corpo, nas suas diversas manifestações, é um tema muito central, explorado não apenas como uma forma física, mas também como um símbolo de resistência, de transformação e emancipação feminina. Pra mim, comer é um ato de nutrição que vai além da sustentação: é um ritual carregado de significados simbólicos, sociais e emocionais. Nasci numa família que sempre prezou muitos encontros à mesa; então, minha educação e a formação da minha identidade (quem eu sou não só como artista, mas também como mulher) vêm desse lugar. A cozinha, como lugar doméstico, vira esse lugar de afeto pra mim e o meu pai, que sempre apreciou muito a gastronomia. Eu ia pra cozinha e gostava de preparar comidas que fossem proporcionar prazer a ele, para a minha família. Mais tarde, minha avó materna, Lourdes Catão, também gostava muito de cozinha. Todos esses prazeres estão ligados — a culinária acaba levando aos encontros.

2 – Você considera a gastronomia uma arte? Por quê? Você diz que o livro não é de arte, nem de receitas. Como você teve a ideia do formato? Como escolheu os convidados?

O livro não é de arte nem de receitas; a palavra arte é nada mais do que estar vivo. São processos de vida, como a gente se posiciona no mundo e quais são os valores que pautam a nossa identidade. A cozinha é um lugar de elaboração, de processos. É assim com o ateliê, então é uma arte. É um livro sobre encontros. O Ayrson Heráclito trata, por exemplo, muito de questões afrodiaspóricas e ligadas ao sistema escravocrata, que estão na base da formação da identidade do preto no Brasil e traz isso para o trabalho dele. Materiais, como o dendê e o açúcar, que são carregados de simbologias, estão muito entrelaçados na história e na formação da identidade negra do Brasil.

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3 – A cada dia, a gastronomia tem mais vitrine, programas de TV, cursos, descobertas de produtos inusitados, cores, formas etc. Você ficou dois anos afastada das artes plásticas para estudar na Le Cordon Bleu. Qual seu estilo de culinária, os produtos que mais ama usar e o que descobriu estudando que não conhecia?

É natural que a gastronomia tenha mais vitrine. Você até pode viver sem pintar, sem se manifestar criativamente, digamos assim, mas não pode viver sem comer. Pode viver sem cozinhar, mas a alimentação está presente na vida de todos nós. A alimentação, de forma alguma, precisa ser de alta gastronomia para ser criativa, interessante ou elaborada — é buscar a simplicidade de determinados ingredientes, é explorar os ingredientes do nosso dia a dia. Tem coisa mais linda como arroz e feijão? E esse arroz pode ser transformado em pó, em farinha, feijão em tutu, brincar com as texturas, tirá-las do estado natural e desidratar. Aprendi a manipulação de ingredientes, fiz dois cursos: um deles, de culinária francesa tradicional, com todas as técnicas, molhos, caldos e emoções. Cortes eu fazia de forma muito orgânica, mas eu não tinha a técnica. Quando você vai adquirindo um repertório, consegue explorar sua própria criatividade a partir do aperfeiçoamento das técnicas. Fiz o curso tradicional e depois o plant based, alimentação toda à base de plantas e vegetais, que é incrível porque você pode substituir elementos, como ovo e leite, por outros. Por exemplo, como é que você faz um merengue sem usar clara? Produzindo uma proteína do grão de bico com aquela água que fica com uma estrutura de claras em neve. Jamais teria descoberto como fazer um merengue vegetariano sem usar produtos de origem animal se não fossem essas técnicas.

4 – Tem uma amiga que costuma dizer que comer é o segundo melhor prazer da vida. Se sim ou não, qual fica em primeiro?

Eu acho que prazer está relacionado a entrega. É você ser 100% você nos processos de criação, e não só no que diz respeito à arte. É ter prazer em esportes e, evidentemente, o mais óbvio seria no sexo, mas é sobre entrega. Então tudo que a gente faz com entrega, física ou emocionalmente, proporciona prazer. E tem maior ou menor prazer? Tem. Às vezes, você pode ter um sexo que não lhe proporciona tanto prazer, assim como você pode comer algo que também não lhe proporciona prazer.

5 – Quais memórias importantes você guarda em volta da mesa?

Acho que todas as memórias que tenho desses eventos de família são afetivas, relevantes e que formaram a base de quem eu sou. Aconteceram à mesa, principalmente no jantar — um momento sempre sagrado para minha família —, respeitando o momento: jamais descalça, jamais sem camiseta. E era onde conversávamos sobre o nosso dia, sobre cada um de nós, meu pai, minha mãe, eu, meus irmãos. À mesa, falávamos sobre valores relacionados à educação, à responsabilidade social, ao dinheiro, ao meio ambiente, todas essas questões que permeiam a nossa existência até hoje. Minha base espiritual-religiosa também foi estruturada em torno da mesa, comemorando as festividades judaicas. Considero-me uma pessoa de espiritualidade aberta: a quebra do jejum, tradição do Yom Kippur, do Rosh Hashanah, sempre acompanhados de falas de rabinos e de patriarcas da minha família. E, assim, fui construindo meu amor por cozinhar. Minhas trocas mais íntimas sempre foram em torno da mesa, com família e, depois, com amigos. À mesa, vivi pedidos de casamento e pedidos de divórcio; então, não tenho como pensar na minha vida pessoal, em quem eu sou hoje, o que eu prezo, sem considerar a importância da mesa ao longo da minha vida.

6 – Qual é o tempero que não pode faltar na sua cozinha e na sua vida?

Amor, entrega e verdade. Qualquer processo criativo, no ateliê ou na cozinha, com esses três elementos, não tem como dar errado.

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7 – Você acha que o Rio tem uma identidade culinária? Qual seria? Onde e o que mais gosta de comer na cidade?

O Rio é uma celebração do encontro entre tradição e modernidade, sempre traduzindo aquela espontaneidade, a malandragem, a descontração do carioca e esse espírito acolhedor da cidade. O Rio tem uma identidade culinária gigante, uma fusão incrível de tradições indígenas, africanas, portuguesas, influências europeias e de imigrantes. O Rio é um importante centro cultural que mescla ingredientes locais com práticas culinárias trazidas de diferentes grupos ao longo dos séculos. E aí temos os pratos ícones, como feijoada, que é de origem africana e portuguesa, com a releitura do bolinho de feijoada, que virou uma comida de boteco. Os desdobramentos do bacalhau, com o bolinho de bacalhau, o famoso picadinho carioca, servido com arroz, feijão, farofa, banana frita e aquele ovo estalado… E as influências afro-brasileiras, com acarajé, vatapá, que, embora sejam associados à Bahia, são muito populares nos mercados e eventos religiosos do Rio. Tem a cultura de boteco, de praia, o caldinho de feijão, pastelzinho de camarão, torresmo, coxinha… Os botecos combinam com o Rio porque a gastronomia é convivência social. E têm as comidas de praia: como não associar o Rio ao biscoito Globo, ao mate, ao queijo coalho assado? São um marco. O Bar Lagoa é um clássico, o Bar Urca, a Adega Pérola, verdadeiros patrimônios culturais que contam a história da cidade, da bossa nova. A cana de açúcar e a cachaça na caipirinha (uma bebida carioca) e as sobremesas, como o cuscuz da praia, os bolos caseiros (de fubá e aipim), o pudim de leite condensado. Adoro ir à feira de São Cristóvão, um ponto emblemático que conecta a culinária nordestina à vida carioca, um espaço de fusão. O mercado de peixe de São Pedro, em Niterói, acaba abastecendo a cidade com frutos do mar frescos. Acho que, nos últimos anos, o Rio também vem experimentando uma renovação gastronômica com chefs usando técnicas mais contemporâneas a ingredientes locais.

8 – O que vem por aí em 2025? Um ateliê-culinário? Porque esse livro poderia dar um programa de TV facilmente… Existe a possibilidade?

Acho que produzir um livro abre muitas possibilidades. Como esse projeto foi muito experimental, nem sobre arte, nem sobre  gastronomia, mas sobre encontros e processos de vida, sobre estar vivo, então tem aberto uma série de portas, como novas ativações com artistas que participaram do livro. Também fui chamada para fazer algumas performances com os participantes, incorporando as receitas, e também para dar um curso sobre processos criativos entre a cozinha e o atelier, em 10 encontros, falando sobre um dos artistas. O livro poderia ser facilmente um programa de TV porque ele é plástico, são conversas muito espontâneas que traduzem pró-audiovisual, e as locações são todas muito bonitas. A gente não fica só na cozinha: o capítulo da Heloísa Ariadne, que tem um trabalho com a terra, fizemos numa plantação onde ela colheu os próprios frutos num produtor no interior de São Paulo. E as fotos são belíssimas. O encontro com o babalorixá Moisés Patrício aconteceu num terreiro de candomblé; ele fez caruru, vatapá, acarajé e amalá. Então, a gente sai daquele ambiente engessado da cozinha e vai para outros lugares com um apelo visual muito grande. Com as conversas, as relações, os laços afetivos, o programa deixa de ser só culinário, passando a falar mais sobre viver, sobre contar histórias, então vai além da cozinha. Já estou conversando com alguns produtores sobre isso, mas acredito que transformar esse projeto em audiovisual seja um desdobramento natural.

9 – No amor, a gastronomia também é um ponto importante? Tem que ter química em todos os sentidos?

Para mim, é essencial. Em todas as relações amorosas, não necessariamente de ordem romântica, mas familiares, minha relação com minha filha e com meus amigos passa pela cozinha. Não consigo me relacionar com alguém que não tenha, de alguma forma, um carinho pelo fogão. Não precisa saber cozinhar, mas a minha vida é muito pautada na relação que tenho com a comida, com meu próprio corpo — entre o universo que circunda o corpo e o universo que habita o corpo. Para mim, é impossível alguém que não entenda a importância desse vínculo. Adoro cozinhar com outras pessoas; tenho muitos amigos chefs e donos de restaurantes e adoro criar junto, pensar possibilidades, experimentá-las. Tem que ter química, sim, em todos os sentidos, para amizades também, uma conversa de bar ou para dentro do quarto, com um parceiro.

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