De Próprio Punho, por Marcus Gasparian (livreiro)
"Ao ver o ótimo filme do Walter Salles tive vontade de voltar ao cinema para tentar viver de novo aquela infância feliz junto com a família Paiva"
Imagine, por um momento, o que era o Rio nos anos 60!… As belezas naturais, a bossa nova, o ambiente cultural, os restaurantes e as pessoas que habitavam essa linda cidade. Isso explica muito a alegria que foi a mudança da minha família de São Paulo pra cá, mais especificamente, para um apartamento de frente pro mar de Copacabana.
Meu pai, Fernando Gasparian, o “Gaspa” como os Paivas o chamavam, era industrial do ramo têxtil e havia comprado, com dois outros sócios paulistas, a fábrica América Fabril. O deslumbramento com a nova vida era absoluta: o fato de irmos à praia todos os dias, antes da escola, provava isso.
Alguns meses depois, a família Paiva veio viver aqui, também, em frente à praia do Leblon. Pronto, a farra estava completa! O Rubens era o melhor amigo do meu pai, e nossas famílias se entrelaçaram de uma forma tão amorosa que parecia ser uma só. “Tia” Eunice e minha mãe eram íntimas; os filhos tinham nascido em cascata, lá e cá: Helena com a Veroca; Laura entre Eliana e Ana Lúcia; o Marcelo entre mim e o Edu; e, finalmente, caçula de todos, a Babiu.
A paixão pela cidade era tanta que, todos os fins de semana, as duas famílias saíam para passear juntas: Paquetá, Prainha, Igreja da Penha, Pavuna, Niterói, Urca, Floresta da Tijuca, Búzios… Eram viagens no tempo e no espaço. Minha memória de uma felicidade maior vem dessa época. Claro que, quando se tem entre 4 e 10 anos, tudo é mais fácil: não há contas a pagar, filhos pra criar e outras preocupações que os adultos têm. Mas era muita felicidade mesmo. Íamos ao Maracanã, aos festivais de música, sempre com muita discussão e risadas.
Já vivíamos na ditadura militar, mas a vida para nós, crianças, era calma. Até que um dia, voltando da praia, veio a notícia: “Vamos morar em Londres“. As respostas às nossas perguntas eram sempre vagas e incompreensíveis. O certo era que sairíamos em 15 dias. A única coisa que eu pensava é se voltaríamos a tempo de ver a Copa de 70 no Brasil. Não voltamos. Fomos matriculados em escolas inglesas e, quando dei por mim, lá estava eu e meu irmão saindo no tapa quase todos os dias, para nos defendermos do bullying inglês.
Veio a Copa, nossa seleção jogando o fino e, então, ganhamos da Inglaterra. Nessa noite, minha felicidade era proporcional ao medo de ir à aula no dia seguinte. Pedi ao meu pai para ficar em casa, e ele nem conversou. Fomos, eu e meu irmão, pra escola, temendo o pior. Quando lá chegamos, nos encaminhamos para o salão principal onde todas as manhãs os alunos cantavam músicas religiosas. Ao entrarmos, a surpresa: todos os alunos e professores nos saudaram com uma salva de palmas! Devo isso ao Jairzinho, autor do gol, Pelé, Tostão, Rivelino e os outros craques.
Depois que saímos do Brasil e nos autoexilamos em Londres, parecia que aquele céu cinzento de lá se instalou pra sempre na nossa vida. A prisão do tio Rubens e toda aquela aflição sobre o que poderia ter acontecido com ele deixaram meus pais arrasados — logo ele, o mais risonho e bonachão dos personagens da minha infância!
Alguns meses depois, veio a exigência do Governo brasileiro que meu pai doasse todas as suas ações da América Fabril para que fossem liberados os créditos que tinham sido cortados pelo então superpoderoso ministro Delfim Neto. Meu pai assinou essa doação pelo valor simbólico de um cruzeiro; assim, garantiu uma sobrevida à empresa e manteve o emprego de milhares de funcionários e dependentes. Deixando de ser um líder empresarial, a volta ao Brasil ficou mais segura, mas a indignação por essas duas perdas fez nascer nos meus pais a necessidade de agir mais energicamente contra a ditadura. E assim meu pai fundou o semanário Opinião, comprou a editora Paz e Terra, editou a revista Argumento, que acabou dando o nome para a livraria. Acharam, acertadamente, que, através da cultura e da informação, poderiam ajudar na conquista da democracia novamente.
Quando ela finalmente voltou, nos anos 80, e surgiu a possibilidade de se pedirem indenizações pelos prejuízos causados pelos governos militares, perguntei uma vez, na mesa de jantar, se ele iria entrar com algum processo. Ele me respondeu que provavelmente a indenização dele seria a maior de todas, mas que ele não entraria, pois quem iria pagar seria o povo brasileiro, e este não tinha nada a ver com os erros feitos por aqueles malucos que dominaram o país por mais de 20 anos. E também não devolveria o seu querido amigo Rubens.
Ao ver o ótimo filme do Walter Salles, baseado no livro do Marcelo Paiva “Ainda estou aqui“, tive vontade de voltar ao cinema no dia seguinte, para tentar viver de novo aquela infância tão feliz junto com a família Paiva. Eu me lembrei daquele filme do Woody Allen em que o personagem principal voltava no tempo todas as noites ao entrar num carro, numa rua deserta de Paris. Mas a cena deles voltando pra São Paulo, foi, pra mim, a mais triste: ali encerrava de vez toda aquela felicidade.
Marcus Gasparian, 64, nasceu em São Paulo, mas é carioca de coração. Foi editor da Paz e Terra e fundou a Livraria Argumento junto com sua mãe, Dalva. Adora ir à praia e andar pela cidade. Gaspar, seu cachorro, é o mais “intelectual” da cidade carioca — na pandemia, entregou livros com o dono. Fã incondicional de Tom Jobim, Marcus procura, no piano, aproximar-se dele.