
Lu resolveu que precisava fazer uma nova tatuagem.
Já tinha um alienígena, uma rosa, uma frase feminista, quatro ideogramas, grafismos maoris e celtas, um escorpião (seu signo), uma medusa subindo pelo pescoço, uma fênix, uma coluna vertebral em 3D ao longo da coluna (nascendo acima da palavra “like” de “A woman without a man is like a fish without a bicycle”, em letras góticas) e uma orquídea.
Tinha também um código de barras no antebraço esquerdo, a língua dos Rolling Stones na lateral do seio, uma alcachofra no ombro, uma mão de Fátima no dorso da mão, uma flor de lótus no dorso da outra, dentes de leão logo abaixo da axila, uma coruja na panturrilha (era para ser na omoplata, mas ali, além do escorpião, já havia uma carpa, um unicórnio, uma Betty Boop, um Om e uma inscrição em árabe — que o moço que vendia esfirra artesanal traduziu como “Imóvel à venda, tratar com Jamile na loja de ferragens”, mas preferiu não contar).
Num dos pulsos, tinha um zíper; no outro, um cacto, uma borboleta, um filtro dos sonhos e um bando de andorinhas. Nas pernas, um arco íris, um yin e um yang, um revólver atirando flores, uma Jéssica Rabbit, uma rosa dos ventos, uma equação de segundo grau, um jogo da velha e um Coringa (o do baralho).
E agora precisava (precisava muito!) fazer um Chapolin Colorado, mas… não encontrava espaço.
Na virilha, havia cerejas (lembra da orquídea? ficava de um lado e as cerejas do outro — e, quando a depilação estava em dia, era possível ver com mais clareza um javali, que era seu ascendente no horóscopo chinês, e um enforcado do tarô).
Talvez pudesse fazer o Chapolin entre o elefante, o dragão, o número 7 e a salamandra, que ocupavam as costelas de um lado (do outro, estavam um sapo, uma smurfete, uma jangada feita por um argentino em Jericoacoara — com um símbolo esotérico ancestral na vela, que Lu depois descobriu ser o escudo do River Plate —, uma estrela cadente, uma terra plana, um colibri, uma calculadora Cassio — com 3,1614 no visor —, uma libélula e um pentagrama).
Logo abaixo das nádegas, vinham um girassol, um gato, duas mandalas, uma âncora, Naruto, Pinóquio, e=mc2, um parafuso, uma cornucópia e XIIIII/VIIII/IIMMIIII (data da primeira menstruação, supostamente em algarismos romanos, feita por uma tatuadora holandesa em São Tomé das Letras).
Resumindo — não cabia mais nada — porque numa nádega havia uma baleia jubarte com o filhote e, na outra, Alice com o Chapeleiro Maluco e uma barra de Toblerone.
Mas como ficar sem o Chapolin? Num dos seios, tatuara um vulcão (o mamilo era a cratera, de onde a lava escorria até perto do ferro elétrico da jarra em formato de abacaxi, homenagens à sua mãe). O outro seio era coberto por uma teia de aranha, sendo a aréola o abdome da caranguejeira, em alto relevo. Do umbigo subiam delicadas volutas verdes até encontrar as frases “Carpe diem”, “Accept your destination” e algo em sânscrito, que o moço que vende esfirra artesanal não conseguiu traduzir, mas que o tatuador peruano de Morro de São Paulo afirmou ser “Amar, pode dar certo” — assim mesmo, com vírgula e tudo.
Lu postou seu desespero no insta. De joelhos (num deles havia uma fada e um manete da Nintendo; no outro, um dálmata, um apontador de lápis e uma Frida) ela perguntava como ia viver sem o Chapolin Colorado, já que a mãe a proibira de tatuar o rosto (só mesmo o olho egípcio nas pálpebras, um cream cracker perto da orelha, um vira lata caramelo na mandíbula e olhe lá).
Alguém sugeriu pedir emprestado espaço na pele de outra pessoa, mediante pagamento. Apareceu um rapaz que ainda tinha cerca de 5 cm2 disponíveis na nuca e morava em Senador Firmino, MG. Não era a localização ideal, mas ele se comprometeu a passar máquina zero uma vez por mês e mandar uma foto para comprovar que o Chapolin continuava bem visível.
Lu e o namorado sentiram que havia ali um filão e criaram o Tattoober, que agencia pele extra para quem já não tem mais espaço no próprio corpo. Você diz que tatuagem quer fazer e as pessoas dizem que partes do corpo ainda têm disponíveis. Se der match, é só pagar a taxa e chamar o tatuador (a fatura cai no cartão do tatuado virtual).
Além do Chapolin em Senador Firmino, MG, Lu agora tem um teletubie roxo num ombro em Camaçari, BA, e uma tribal marajoara numa panturrilha em Zamboanga, nas Filipinas.
Para evitar que alguém venda tatuagem e aplique henna, a Tattoober exige que o procedimento seja transmitido onlaine, enquanto o tatuado remoto recebe agulhadas sem tinta, só para criar um vínculo álgico (também conhecido como “aquela deliciosa dor desgraçada”) com o desenho que irá circular em outra parte do corpo, em outra parte do mundo.
Hoje, Lu acordou precisando muito (muito!) tatuar um louva-a-deus ou um filtro de linha — não definiu ainda. Viu que há um cóccix disponível em Paragominas, PA, e uma parte de trás da coxa em Cochabamba, na Bolívia. No Rio, o cm2 de pele virgem está uma fortuna, e mesmo assim só se encontra em freiras na clausura do Convento de Santa Teresa e numa comunidade neopentecostal de Brás de Pina. Mas de que adianta uma tatuagem que ninguém vai ver, a não ser numa eventual autópsia?
Lu e Beto, o namorado, têm estudado formas de fazer tatuagens internas, por meio de videolaparoscopia. A Anvisa ainda não foi consultada, mas já há lista de espera para quem quiser uma sereia no fígado, um coração flechado no pericárdio (olha que fofo!) e uma caveira mexicana no interior do crânio.
Esta semana uma digital influencer belga chocou a internet e foi parar nos trend topics ao tatuar 100% da superfície corporal no tom da sua pele original. Suas aparições em público sem nenhum rabisco têm provocado uma onda mundial de pasmo e indignação. Especialistas se dividem entre tratar-se de um caso de exibicionismo crônico ou de incapacidade de expressar os próprios sentimentos.
O julgamento da desgaratujofobia deve entrar na pauta do STF em 2020. O relator já prepara um voto em que fala das pinturas rupestres, dos petroglifos de Nazca, dos corações em casca de árvore, dos queloides, das assinaturas no gesso do braço quebrado, passando pelos bois marcados a ferro quente, o chicle de bola Ploc, a hermenêutica teratológica e os carimbos usados nas boates para indicar quem já pagou.
Lu nem dormiu esta noite pensando em tatuar a íntegra do voto. Mas para isso precisa da população da China, da Índia, da Indonésia, do Paquistão e da Nigéria. E, ainda tem que fazer um ajuste no Chapolin Colorado, que saiu com M, não com N.
