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Lu Lacerda

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Crônica, por Eduardo Affonso: Resfriado

"Meu pai caía de cama e dali não se levantava nunca mais por vários dias"

Por lu.lacerda
17 nov 2024, 08h00
affonso resfriado
 (IA/Reprodução)
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Quando meu pai pegava um resfriado, a casa toda se recolhia como se fosse quaresma e tivéssemos no quarto o Senhor Morto em pessoa.

Fechava-se a janela, cerrava-se a cortina, a luz não podia ser acesa, era proibido rir, brincar, correr pela casa, falar alto, existir.

Seus resfriados eram evento tradicional no calendário doméstico, assim como a ida anual à praia e a cerimônia do encapamento de livros e cadernos no início do ano letivo – só que mais solene e menos interativo.

Meu pai caía de cama e dali não se levantava nunca mais por vários dias.

Embebia lenços em álcool, e os enrolava em volta do pescoço, formando um espesso cachecol etílico-ortopédico. Vestia o pijama de flanela, calçava meias de futebol, botava luvas e se enfiava embaixo de uma profusão de colchas e cobertores – fosse nas friacas de Andrelândia, na umidade de Viçosa ou no calor senegalesco de Unaí.

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E gemia.

Os gemidos do meu pai, naquele silêncio obsequioso que se formava à volta da sua enfermidade, podiam ser ouvidos longe, e nada me tira da cabeça que gemesse menos para aliviar a dor que para ser ouvido, onde quer que estivéssemos, em qualquer canto da casa.

Uivava, e minha mãe acudia com chás, canjas, comprimidos, xaropes, emplastros de angu. Besuntava-lhe o peito de Vick Vaporub, secava o suor que descia em bicas, esvaziava o penico e checava a temperatura quando os gemidos davam trégua.

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Nós também nos resfriávamos de vez em quando, mas era só espirro febre dorzinha no corpo coriza tosse. Meu pai, não – ele desabava, olhos injetados, voz sumida, calafrios de fazer tremer os sagrados corações de Jesus e Maria que vigiavam toda a encenação, suspensos na cabeceira da cama.

Naqueles momentos, revogava-se o heliocentrismo, e meu pai era o eixo de tudo. Ou, como dizia minha mãe, ele era a noiva no casamento, o defunto no velório.

A coisa incluía uma e outra visita de um médico – que receitava repouso e, para não perder a viagem, um antitérmico.

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O resfriado anual lhe devolvia a humanidade, e fornecia as desculpas necessárias para poder ser, temporariamente, vulnerável, suscetível.

Depois de uns três, quatro dias, assim como sucumbira, ressuscitava. Circulava ainda um pouco com os lenços alcoolizados no pescoço, até recuperar a voz, a pose, e tornar-se de novo inexpugnável.

Minha mãe, quando tinha crises de labirintite, cozinhava, lavava louça e passava roupa, adernada para um lado, equilibrada num pé só, sem deixar o feijão queimar, um copo quebrar ou uma camisa franzir.

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Sabe como é, mulher é um sexo frágil.

Eduardo
(arquivo pessoal/Arquivo pessoal)

 

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