Crônica, por Eduardo Affonso: Por um bullying de café
Barista não é o sujeito que entende de café. É o sujeito que problematiza o café.

Barista não é o sujeito que entende de café.
É o sujeito que problematiza o café.
É o que procura (e acha) defeito no café, enquanto a gente, que gosta de café, bebe café e pronto.
O barista está para o café assim como certos homens estão para as mulheres. Tão bonita, mas tem estria. Não tem estria, mas o seio esquerdo é um centímetro mais baixo que o direito. (Não sei se você já reparou, mas o direito é normalmente um pouco mais firme e altaneiro, principalmente nas mulheres destras; eu nunca reparei.)
O barista está para o café assim como certas mulheres estão para os homens. Bonito, mas tem pelo no ombro. Não tem pelo no ombro, mas é casado. (Ou seja, qualquer pequeno defeito invalida todo o conjunto.)
O barista não gosta de tomar café, mas de fazer café. Gosta do ritual. Da liturgia. Da misancêne.
Não pó pô pó no melita e despejar água quente.
Não.
Água quente não serve, muito menos água fervente: tem de ser água entre 93ºC e 94ºC.
Logo, para fazer café você precisa de pó, filtro, água (entre 93ºC e 94ºC) e um termômetro.
O pó deve ser moído (de preferência, na hora) na granulometria correta – nem grosso, nem médio, nem fino, mas médio mais para fino. Sabe aquela cara de desprezo que o garçom faz quando você pede filé ao ponto, mais para bem passado? Pois é, prepare-se que ver essa expressão na cara da tia do cafezinho quando você se tornar um coffee snob.
Para coador de pano, a proporção é de 8% de café, ou 80 g de pó, por litro de água. Para filtros de papel, 1% a menos. Portanto, além do termômetro, leve também uma balança de precisão para a pia da cozinha.
Não é de qualquer jeito que se deve proceder ao milagre diário da transubstanciação de H2O em café. Nada de jogar duas colheres de pó e ir despejando água. Se for usar filtro de papel, ele tem de ser previamente umedecido – ou melhor, escaldado. Com água, claro, entre 93ºC e 94ºC.
Escaldado o filtro (e descartada essa água), aí, sim, se depositam os 8% de pó (sem apertar!) e é adicionada a água, em fio, de forma lenta e constante. Não no centro do coador, mas pelas bordas, em movimentos circulares no sentido anti-horário (essa parte eu que inventei, mas não duvido que haja algum barista que garanta que o sabor do café coado no sentido horário seja outro). E não despeje toda a água de uma vez: regue um pouco e deixe hidratar. Só depois adicione o restante.
Em briga de homem e mulher a gente já mete a colher. Ao coar café, não. É cafeicídio. Crime inafiançável.
Depois desse sacrifício todo, nem pense em colocar açúcar e esconder as notas sensoriais do café. Você não vai querer perder aquele toque de limão siciliano colhido no crepúsculo de mês que não tem R, com notas de flor de avelãs, raiz de noz moscada e tabaco mastigado por camelos canhotos, vai?
Sim, pode levantar o dedinho na hora de segurar a xícara. Ninguém é de ferro.
