Xuxa e Marlene é uma história de sucesso, mas sem vilã e mocinha
Tudo na vida é produto do seu tempo, trazer pra atualidade o que foi feito no passado fica fora de contexto e inviável para uma análise justa e coerente
Escrevo ainda sem ter assistido ao quinto e último episódio de “ Xuxa, o documentário”, no Globoplay.
De qualquer forma, fica difícil imaginar o que seria dessa série documental sem o quarto episódio. O tão esperado encontro entre Marlene e Xuxa, após um hiato de 20 anos, já era desde o início da divulgação o ponto forte (e de interesse) do documentário. Ficou claro que, mesmo com tanta mágoa e ressentimento, não dava para abrir mão da presença da ex-empresária. Cá entre nós, a cereja desse bolo.
Nas entrevistas, Xuxa disse que pensava em encontrar uma Marlene mudada e consciente dos excessos cometidos como sua gestora durante quase duas décadas. Não foi o que aconteceu.
Antes de me aventurar a escrever essa coluna, li alguns artigos, centenas de comentários no Twitter, Instagram etc. Tendo esse espaço na Veja Rio e com quase 30 anos no ramo de agenciamento artístico, me senti motivado em dividir minha ótica sobre o assunto.
Nas redes sociais, rapidamente essa história se tornou um “Fla x Flu”. Contudo, não escrevo como torcedor de lado algum. Não sou amigo de nenhuma das duas e sequer as conheço, portanto fico muito confortável para comentar com imparcialidade.
De cara, o que mais me chamou a atenção foi o fato de trazerem à tona, nos dias de hoje, um modelo de gestão que Marlene imprimiu há mais de 20 anos (!). Gostando ou não, tudo na vida é produto do seu tempo, e trazer para a atualidade o que foi realizado no passado fica absolutamente fora de contexto e inviável para uma análise justa e coerente. Claro que o tribunal da internet não está nem aí pra isso e quer mesmo é fogo no parquinho.
Olhando para esse passado, será que Marlene foi a única a gerir de forma controladora, incisiva e muitas vezes exagerada no showbizz ? Com certeza, não. Mas foi a única a cuidar meticulosamente da carreira de Xuxa – o que, convenhamos, não deve ter sido nenhuma Nutella (que nem existia na época).
Se formos colocar outros exemplos na mesma balança, o que falar, por exemplo, de Daniel Filho, Ricardo Waddington, entre outros lendários chefões, se todos os atores que se sentiram oprimidos em algum momento viessem a público falar da forma como cada diretor atuava na época? Até onde foi falado, além de situações constrangedoras, esporros homéricos ecoavam nos estúdios do Jardim Botânico e que depois migraram para o Projac. Isso, hoje, também não seria considerado um comportamento abusivo ?
E se Marlene era uma pessoa tão opressora e aterrorizante, porque os amigos da apresentadora, além dos que deram depoimento no DOC, não intercederam e a protegeram na época ? Arrisco a resposta: porque na ocasião devia ser considerado “normal”, dava excelentes resultados e parecia fazer parte do show. No fim das contas, o jeito temido e a mão de ferro geravam um certo folclore e marketing em torno da ex-empresária. Tanto que até a própria Xuxa parecia se divertir com isso.
Então, porque só agora ? Fãs dirão que “a ficha caiu”. Normalmente, nesse tipo de caso, é mais fácil a ficha cair sempre depois que o sucesso se estabeleceu, e a amizade não resistiu. Isso até me faz lembrar de uma frase clássica de Warren Buffet: ” Se alguém está sentado na sombra hoje, é porque alguém plantou uma árvore há muito tempo”.
Por outro lado, mesmo de forma involuntária, Marlene também acaba contribuindo para evidenciar que nem toda fórmula que deu certo no passado vai servir para sempre. Muito pelo contrário. É preciso manter o olhar sob constante renovação e estar atento a todas as fases que um artista, marca ou empresa atravessa. Só assim é possível conduzir cada etapa de forma assertiva e adequada.
Nessa emblemática participação em “Xuxa, o documentário”, acho que Marlene perdeu uma grande oportunidade de mostrar alguma mudança, uma evolução como ser humano e, consequentemente, como profissional. Posso estar enganado, mas me pareceu ainda orgulhosa e com uma contraproducente “Síndrome de Gabriela”. Uma pena, pois pelo que ouvi de quem já trabalhou próximo, Marlene é uma super craque no audiovisual.
Se olho para cinco anos atrás e vejo o quanto refleti e mudei sob tantos aspectos (graças a Deus!), imaginem em vinte.Espero continuar sempre me questionando e aberto a mudanças. Entretanto, para isso, é preciso querer de forma genuína, sem aparências. Isso inclui manter um olhar constante, de forma honesta e humilde, para dentro de si próprio. Mudanças verdadeiras não ocorrem de fora pra dentro ou de forma mecânica, quando isso acontece, a reincidência é inevitável. Mudanças significativas acontecem de dentro pra fora. Se revejo uma situação e consigo mudar minha forma de pensar sobre ela, é natural que eu mude as minhas ações e decisões dali em diante.
Pelo lado da protagonista da série, Xuxa tem todo direito de fazer uma retrospectiva da sua vida e se sentir mal pelo que permitiu e passou. Analisando hoje, de fato muita coisa parece cruel e desproporcional. Acredito que Marlene possa ter errado algumas vezes na forma, mas não na intenção. O fato é que Maria da Graça se tornou XUXA naqueles moldes. Ponto. Hoje talvez não precisasse ser assim, mas quem aí pode afirmar que ela teria se tornado a estrela que se tornou sem a cabeça pensante, a mão pesada e os famigerados gritos de Marlene Mattos ?
Por tudo que passei na vida, coisas maravilhosas e outras bem ruins, aprendi que se for responsabilizar as pessoas por situações que me fizeram mal, também terei que dar-lhes crédito pela força e determinação que adquiri. E, principalmente, pela pessoa que me orgulho ter me tornado. Tudo que atravessei me esculpiu. Como pessoa e como profissional.
No quarto episódio, por diversas vezes Xuxa se mostrou indignada, questionou coisas fora de época (e de contexto), mas deu sorte que Marlene não parecia estar disposta a grandes embates. Quando ela afirma que a ex-empresária ditava a forma de ela dar entrevista (“diz isso, não diz aquilo”), parecia que Xuxa estava tão preocupada em apontar o dedo que demonstrou total desconhecimento de uma prática tão conhecida quanto antiga no mercado audiovisual: o media training.
Um exemplo de como essa prática não só é comum, e ficou cada vez mais fortalecida, é que as maiores plataformas de streaming do mundo sistematicamente convocam os artistas contratados a participarem de reuniões de media training (uma espécie mais elaborada e profissional desse “diz isso/não diz aquilo”), justamente para orientar o que está alinhado com os objetivos e propósitos do produto. Nada demais. Sem melindres.
Por fim, senti falta mesmo de duas coisas que mudariam a tônica do documentário. Uma de cada lado das personalidades.
Marlene: – Xuxa, desculpe se te magoei ou machuquei de alguma forma, nunca foi minha intenção. Tudo que fiz foi porque acreditava ser o melhor para você na época. E também por duas outras razões. Por zelo e por amor.
Xuxa: – Marlene…apesar de tudo, valeu a pena. Muito obrigada.
Ike Cruz é empresário artístico e fundador do Actors & Arts
** o texto não reflete necessariamente a opinião de outros membros da nossa equipe e dos artista dos quais representamos.