Cancelados e chancelados
Esse importante movimento contra os cancelamentos deveria ser proporcional ao cuidado em defender quem simpatizamos sem conhecer o suficiente
Antes de mais nada, um aviso. Se o leitor espera ver nas próximas linhas alguma crítica pungente em relação a Karol, Patricia ou Joana vai se frustrar. O mesmo vale para os que esperam que eu saia em defesa de Lucas, Pedro ou Paulo.
Desculpe por decepcioná-los, mas não sou telespectador do BBB. Antes que me cancelem por isso (sim, já li que quem não assiste ao programa é um alienado), afirmo que não tenho absolutamente nada contra realities, mas é que além de dormir muito cedo e léguas de ser um intelectual, ainda prefiro gastar uma pequena parte da minha noite com livros e filmes. Sim, devo estar ficando velho mesmo, não consigo me entreter com tanto choro por pouco e muita discussão por nada.
Já tentei usar toda minha boa vontade, mas não consigo. BBB e ioga definitivamente não são pra mim.
Dizem que a casa é reflexo da sociedade atual. Será? Pode até ser, talvez em parte. Pela minha ótica, muitas vezes, o “ser eu mesmo” que alguns participantes bradam já é um discurso clássico de alguém que não será ele mesmo. Digo em parte pois querendo ou não é um jogo, e filmado (não consigo imaginar 100% de naturalidade com a consciência de estar sendo monitorado por câmeras).
O fato é que os chamados “vilões” raramente decepcionam. Eles já chegam mostrando suas cartas. Falta de coletividade, intolerância, arrogância etc…O que me preocupa sempre são os chamados “mocinhos”, as unanimidades e os “gurus”.
Sabemos muito pouco sobre a vida do nosso vizinho. Seja de porta ou na tela da TV. Cada um vende o que lhe parece conveniente, compra quem quer. Seja por empatia ou identificação. Importante perceber que a imagem que fazemos de alguém é reflexo dos nossos valores pessoais. Portanto, nada mais natural que muitas vezes haja divergência sobre uma determinada pessoa e decepção quando a conduta do ídolo trai nossas expectativas do que consideramos justo ou ideal.
Nas últimas semanas, diante de tanta polêmica e pedidos de opinião, fui me inteirar melhor sobre essa edição do BBB. Assisti aos resumos, pesquisei comentários nos sites, no Twitter e no Instagram.
O que mais me chamou a atenção não foi a polêmica em si (essa é sempre esperada, só muda o tipo e a temperatura), mas o fato de que no caminho inverso dos canceladores sempre tem uma legião de “chanceladores”. Aqueles que escolhem endossar e defender arduamente o lado dos que causam mais empatia ou parecem mais fragilizados, injustiçados. Quero deixar claro que não me cabe defender lado algum e nem me posicionar sobre os participantes do reality. Não tenho tal pretensão, é apenas um convite a uma reflexão mais abrangente e imparcial sobre um cenário mais amplo e não menos importante.
Se por um lado os canceladores, que sem motivo para tanto e na maioria das vezes sem argumentos justificáveis, anseiam pelo sangue da discórdia, carregam ódio no discurso e promovem o tal linchamento virtual, os chanceladores defendem arduamente seus tutelados igualmente em “efeito manada”. Claro que não na mesma proporção.
É impressionante o cabo de guerra que se instala no universo da polêmica. Não há um debate benéfico, apenas discussão e bate boca. Uma das boas lições que aprendi é que quando se “bate de frente” ninguém passa.
“Ame seu vizinho, mas faça sua cerca”. Sempre gostei dessa frase, ela sugere proteção e cuidado. Tanto de um lado quanto do outro.
Com a exceção dos nossos familiares e alguns amigos muito próximos (mas às vezes até a família surpreende e também decepciona), conhecemos muito pouco as pessoas. Ou conhecemos apenas o que elas permitam que vejamos.
Particularmente, sempre cismei com unanimidades e endeusamentos. Para emitir alguma opinião sobre alguém, sempre usei de duas coisas que me parecem fundamentais e primárias: imparcialidade e o máximo de informação. E mesmo assim suscetível a equívocos de avaliação.
Todo esse importante movimento que está sendo criado para acabar com o discurso de ódio na internet deveria ser proporcional ao cuidado em tutelar quem idolatramos pensando que conhecemos o suficiente.
O médium João de Deus é apenas um exemplo. Outro, mas ainda sob júdice, o “mestre da meditação” e tantos outros gurus por aí.
Quem garante que o mocinho da ficção, que arrebata corações fora da tela, não é um psicopata em primeiro grau ou um lunático?
Se devemos muito ter cuidado ao apontar o dedo ou até mesmo julgar os que atacam (uma injustiça pode destruir mais que a reputação, destrói uma vida inteira), também deveríamos ter mais critério ao enaltecer desconhecidos populares.
Muitas vezes a ajuda que pensamos estar prestando não vem somente do calor do afago ou da blindagem, mas de um conhecimento mais profundo, para saber de fato o que outro realmente necessita.
Ike Cruz é empresário artístico, especialista em gestão de imagem e gerenciamento de crise