Fernanda Torres: “A vida não vale uma partida de futebol”
Na crônica da semana, a atriz compara Neymar, chorando como um bebê sobre o gramado, ao estado de espírito do brasileiro diante das eleições de outubro
Assisti de Roma ao último jogo da seleção brasileira na Copa. Como os italianos não se classificaram, a cidade se manteve indiferente à febre em torno do Mundial, o que ajudou a minimizar a desgraça. No dia seguinte ao da debacle, bandeiras verde-amarelas entraram em liquidação nos camelôs dos principais pontos turísticos, e acabou-se o assunto. Assim como no 7 a 1 de 2014, desisti do jogo no segundo gol. Abandonei a televisão procurando me convencer de que a vida não vale uma partida de futebol.
Entre a vaidade capilar de Neymar, sua dor fingida ou sentida — quem pode saber? — e a solidez moral de Lukaku, fico com Lukaku. O mesmo digo da dupla uruguaia Edinson Cavani e Luisito Suárez, que jogou lindamente contra Portugal, antes de perder para a França. CR7 é metrossexual, mas gasta mais tempo treinando do que aparando a cutícula, além de jogar como adulto, até quando é derrotado.
Desde 2014, a seleção canarinho parece formada por meninos, e não por homens. Tite melhorou o emocional do grupo, mas, apesar do talento, nossos atletas exibiram um semblante imaturo e assustado no torneio. Não há semelhança entre eles e a malandragem dos Ronaldos e de Romário; tampouco eles têm a altivez de Falcão, Zico e Sócrates; nem, menos ainda, a supremacia de Pelé, Jair, Rivellino e Carlos Alberto.
A partida contra o México foi boa. Achei que havíamos centrado e que conseguiríamos avançar. Não à toa, três jogadores mexicanos entraram em campo com o cabelo descolorido, enquanto o escrete brasileiro se manteve fiel à cor original de suas madeixas. O personal cabeleireiro deveria ser abolido nas próximas campanhas. Sobrou hair design onde faltou futebol.
Neymar entrou em campo para enfrentar a Bélgica sem o vergonhoso topete louro-blondor da estreia, mas o “V” da nuca veio aperfeiçoado, sugerindo tempo investido no salão de beleza. Aquilo não me pareceu bom sinal, suspeita confirmada pelo gol contra, seguido de um segundo legítimo dos canários belgas.
Mesmo depois de o meu filho anunciar o gol honroso do Brasil, não acreditei que o quadro se reverteria. Preferi continuar atenta à bela vista sobre os telhados romanos. Que importância tem uma Copa do Mundo, pensei, diante de milênios de história? Da Etrúria a Eneida, do Império Romano à Renascença, de Napoleão à II Guerra Mundial, Roma tudo viveu. Roma caótica, ainda ativa e pulsante. A Itália, assim como o Brasil, aprendeu a sobreviver apesar de seus governantes. Mas na terra brasilis falta tudo o que aqui abunda: arte, cultura, culinária, urbanismo, arquitetura…
Mais do que os 2 a 0 da Bélgica sobre o Brasil, o que deveras me deprimiu foi a notícia do encontro do prefeito do Rio de Janeiro com sua base religiosa na sede da prefeitura. Só a crença evangélica pode salvar o país, disse ele. Como discordar? A Universal não brinca em serviço. O único canal de televisão em português na Itália pertence ao bispo Macedo. Entre a BBC, a RAI e a TF1, é possível acompanhar as novelas bíblicas brasileiras. O poderio evangélico é inevitável, assim como foi o cristão, durante a Roma pagã.
Numa hora desamparada como a que atravessamos, triunfa a retórica populista de que papai do céu enviará um messias para cuidar dos desvalidos e punir os pecadores. Crivella se elegeu e continuará se elegendo assim. Olhando pela janela do hotel, pensei na nossa fragilidade cívica e na tragédia que nos aguarda em outubro. Não sei se é justo, ou factível, estabelecer alguma relação entre a psique da nossa seleção e a do próprio país. Mas sinto que Neymar de boca aberta, chorando como um bebê sobre o gramado, é um retrato do nosso estado de espírito.
Na eleição que se aproxima, não é preciso programa de governo, aliança ou conhecimento administrativo. Estou muito descrente da nossa capacidade de encontrar uma saída que não a de abrir o berreiro à espera de salvação. O político que prometer nos colocar no colo leva o pleito e a possibilidade de alguma mudança para melhor num futuro distante. Que 2022 nos seja mais leve.