Gosto de revisitar discos que me atravessam. Quando a rotina pesa e a terapeuta não tem como me encaixar de última hora, vou até a estante, fico em frente a prateleira batizada por mim de “Réscue” e seleciono, de olhos fechados, com o dedo indicador, um dos incontáveis álbuns que fazem parte da trilha sonora da minha vida. Ontem, depois de um dia (in)tenso – talvez a culpa seja de Marte, regente do meu signo, que está retrógrado – e de não conseguir uma consulta extra com minha injeção de morfina personificada, fui até a estante, me posicionei seguramente em frente a prateleira “Réscue” e selecionei aleatoriamente, de olhos fechados, com o dedo indicador em riste, o disco duplo (e de estreia) de Luana Carvalho. Já visitei aqueles versos em outras ocasiões mas foi a primeira vez que dei a atenção merecida ao encarte.
Li, também pela primeira vez, uma frase publicada nos ‘agradecimentos’ daquele mini livro, que resignificou boa parte da minha relação com Dona Olga, aka minha progenitora. Luana agradece “à minha mãe, que me colocou no mundo mais de uma vez”. Dedicar seu primeiro registro fonográfico à Beth, mãe e profissional que exerce o mesmo ofício, não é de se surpreender. Mas aquela frase, aparentemente simples mas cheia de significados subliminares, não abandonou meus pensamentos ao longo do dia.
Quantas vezes nossos pais nos dão vida ao longo da vida?
A única certeza que temos, após nascermos, é que morreremos. É sina, é destino, talvez karma ou até castigo divino mas deve significar alguma coisa o ser humano ser feito de lutos e renascimentos.
O sábio Quintana já dizia: “da vez primeira em que me assassinaram, perdi um jeito de sorrir que eu tinha. Depois, a cada vez que me mataram, foram levando qualquer coisa minha…”. Quantas vezes somos assassinados entre o nascimento e a morte? Quantas vezes nos matamos vida afora? Quantas surras um ser humano é capaz de suportar?
É difícil reaprender a respirar. Em tempos de amores líquidos, qualquer fôlego já é um pouquinho de saúde. Aos trinta e sete, já perdi a conta das vezes que me faltou o ar. Seja por medo, espanto, surpresa, perdas, paixões, gozo, entusiasmo, expectativa…Não me recordo mais a quantidade de vezes que a sensação de “não vou resistir” me tomou de assalto.
As dores de amor são duras porque apesar de reais não deixam cicatriz. Elas nos deixam burras – desculpe o eufemismo -, nos dilaceram – por dentro e, às vezes, por fora -, fazem com que nos afoguemos em nossas próprias lágrimas mas aos olhos dos outros, um bom corretivo resolve a questão. Eu precisando, a todo custo, reaprender a respirar e o mundo me oferece um corretivo de alta cobertura para olheiras. Francamente!
Veja bem: quando, na frase acima, explano “as dores de amor”, não me apego somente ao amor carnal mas a tudo que nos dedicamos “alone”, sem parcerias ou trocas. Em bom português, me refiro a nossas escolhas de esmurrar pontas de facas porque no fundo – bem lá no fundo – a gente sempre sabe as batalhas que valem e as que não valem à pena. Como diz aquele meme que vez ou outra aparece em nossa timeline, “todo amor dá certo quando existe reciprocidade”.
Mas o tempo, aquele que Caetano batizou de “compositor de destinos” e afirmou ser “um dos deuses mais lindos”, vai passando e de repente, não antes de um rigoroso inverno que parece durar mais de três meses, a primavera chega com suas cores e percebemos que apesar da ferida ainda não ter cicatrizado, ela já deixou de sangrar. Respiramos mais profundamente e percebemos que a qualidade do ar melhorou porque a natureza não está nem aí para o nosso tsunami pessoal. Consigo olhar para as outras partes do meu corpo, que embora ainda com nítidos sinais de dilaceramento já é capaz de se erguer novamente.
Ficar de pé depois da sensação de quase-morte renova as esperanças e ventila o cérebro. Reaprendemos a rir das piadas idiotas dos amigos e lembramos que rir é bom. Voltamos a sentir o gosto dos alimentos e recordamos que um dos maiores prazeres deste período entre o nascimento e a morte é comer (e beber!).
Nascer e morrer várias vezes durante a vida é normal. Transformar fobias em matéria-prima é caminho e a estrada pode – e esperamos que seja – ser longa.
Os pequenos, e mesmo os grandes, lutos são necessários. Ninguém nasce sabendo interpretar os sinais e, na maioria das vezes, quando achamos que já aprendemos alguma coisa, algo se rompe e com o rompimento vão-se todas as certezas. E voltamos a pensar: se tudo acaba um dia, por que não agora? E aí começa tudo outra vez.
Precisaremos reaprender a respirar e eu, particularmente, preciso sempre que minha mãe me recoloque no mundo.
Deepak Chopra nos relembra “a morte não é contrário à vida, a morte é contrária ao nascimento. A vida não tem contrário”. Então, sigamos na corda bamba.
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Por falar em corda bamba, asfixia, hipocrisia e “gente de bem” (estes últimos não foram citados explicitamente mas estão nas entrelinhas), dois artistas que eu tenho profunda admiração lançaram músicas novas esta semana. Ambos os singles dialogam com o momento sócio, cultural e político que vivemos. Não deve ser fácil pra um artista, conectado com a REALIDADE e ciente de seu poder de amplificação, se manter isento em tempos de cólera.
Paulinho Moska – Nenhum Direito a Menos
André Mussalém – Resista, Meu Filho, Resista
Os tempos são difíceis mas tentemos não perder a ternura (Viva Che!). Sigamos, companheiros!!
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Aproveito pra agradecer os inúmeros comentários sobre a coluna da semana passada. Sim, é um texto autobiográfico. Nem todas as colunas são mas a da última semana, por acaso, é. A desta semana também. Na verdade, todas são – direta ou indiretamente – autobiográficas. Como dizem, o escritor é uma espécie de cavalo. Transbordar é preciso. A vida é muito curta pra vivermos sem reciprocidade. Não é fácil encarar nossas fobias mas alimentá-las é ainda pior.
Pra quem não sabe do que estou falando, clique aqui.