Medo Bobo
Esse climão chamado vida é feita de ciclos. Desculpe começar a coluna com uma frase tão clichê mas, às vezes, precisamos recorrer a elas pra dar visibilidade ao óbvio. Prometo não me chatear se você parar a leitura por aqui e sair da frente da tela pra dar pipoca aos macacos. Poderia prometer me redimir até o final mas não estou numa fase de falsas promessas.
Eu falava sobre os ciclos da vida. Mas nem era sobre isso que eu queria falar nesta primeira publicação pós férias. Sentei, decidida, em frente ao computador para escrever, finalmente, sobre minhas fobias. Eu sei que a temática desta coluna é outra mas continue lendo, quem sabe eu não surpreenda você no final?
Passaram-se dois dias – esta coluna deveria ter sido publicada na quarta – e as quatro primeiras linhas já haviam sido deletadas mais de cem vezes. Eu sempre mudo de assunto quando sento, decidida, em frente ao computador para escrever sobre meus medos. Já cheguei a escrever um conto – premiado diga-se de passagem – sobre ficção científica fugindo da explanação das minhas fobias. Liguei o rádio pra ver se o dial me inspirava bem na hora que tocava “nossa” música – perceba que o nossa está entre aspas porque sei que ela é nossa só pra mim. A verdade, cá entre nós, é que eu queria escrever um texto sobre paixões avassaladoras mas elas me assustam.
Tendo a acreditar que, de certa forma, o “deus da escrita”, uma entidade onipotente e onisciente que me acompanha, de longe, há muitos anos, me protege de discorrer sobre um tema tão delicado antes de ter total domínio sobre ele. Pensando bem, é até contraditório querer ter domínio sobre paixões avassaladoras. Elas são e ponto.
Mas ansiedade é uma coisa difícil de controlar, e nem sempre temos as dez gotinhas de Rescue à mão. E eu sentei, decidida, em frente ao computador para escrever, finalmente, sobre minhas fobias e vou fazê-lo mesmo que eu tenha que reviver dores que eu já nem lembrava que existiam.
A música estava no início então ouvi o refrão duas vezes. Músicas (e cheiros) têm o poder de nos transportar pra outro tempo e espaço em milésimos de segundos. E quase que imediatamente voltei pra noite em que tudo começou.
Enquanto ouvia aqueles versos, percebi que ao longo das 48 horas que haviam se passado – agora já eram quase 72 -, sempre que eu vasculhava as lembranças me vinha você. Ao perceber isso fiquei feliz mesmo que nós dois saibamos que o final desta história não tenha sido o desejado por mim. Mas há anos a imagem que me vinha à cabeça quando eu revirava meu baú de memórias era outra. Então sorri ao perceber que agora você ocupava aquele lugar.
É sempre bom mudar de ares e se abrir pro novo. Mas às vezes o caminho de volta do poço é tão sombrio que preferimos nos blindar a viver novamente naquele limbo chamado “paixão avassaladora não correspondida”. Eu me blindei tanto ao longo dos últimos sete anos que cheguei a me esquecer que paixões avassaladoras rompem quaisquer barreiras. Elas nos tiram do eixo sem esforço. Como já não me lembrava desta sensação – mezzo gozo absoluto, mezzo desespero – não percebi quando ela furou meu bloqueio com uma frase simples e repleta de cuidado.
Na noite que tudo começou, saímos pra jantar como já havíamos feito inúmeras vezes. Bebemos, de bar em bar, muitos copos, como dizem os portugueses. Cansados de vagar pelas ruas, fomos pra minha casa na companhia de duas garrafas de vinho bom e barato. Na noite em que eu, pela primeira vez, percebi você com outros olhos, começamos no sofá. Mas não…não éramos nós dois, muito tesão e pouca roupa. Éramos nós dois, muitas confissões e camadas de casacos. Ao lembrar daquela noite, sou capaz de reproduzir cada frase falada por nós – talvez trocasse uma ou duas palavras, nada além disso. Paixão avassaladora é uma coisa difícil de controlar e nem sempre temos Rescue ou Passiflora à mão. Acho inclusive que o efeito placebo dos florais pode ser comprovado nessas horas.
É uma pena que sua memória não tenha registrado tantos detalhes quanto a minha. Talvez você até tenha registrado mas os guardou naquela parte do cérebro mais difícil de ser acessada por, quem sabe, lealdade a alguém. Às vezes a realidade parece um melodrama de quinta categoria. E eu tenho a certeza que o roteirista da minha vida é o mesmo do Didi Mocó.
Menos de 24 horas depois daquele instante, estávamos frente a frente jantando novamente mas você já era outra pessoa. Quando fomos nos despedir, depois de uma noite desastrosa em que confirmei que é melhor criar um rinoceronte em um quarto e sala no Catete do que expectativa, fui tomada pela ansiedade porque novamente estava distante do Rescue. Desejei que tivesse segurado minha mão, entrelaçado nossos dedos de maneira bem firme, e dito: “Vamos pra sua casa ou pra minha?”. Mas não. Você disse naquele tom de voz que eu reconheço “tchau” e eu, “valeu”.
Lembro que nosso adeus foi um daqueles momentos que dura apenas cinco segundos cronometrados mas retém muitas camadas de sentimentos. Fui capaz de sentir um frio percorrendo minha espinha, vértebra por vértebra. A minha mão, num automatismo instintivo e descontrolado, se encaixou na sua e eu disse com ternura: “Não vamos deixar de ser amigos”.
A música já estava no fim e eu revivendo cada detalhe de uma história que sequer teve status de história. Se eu soubesse, tinha feito antes. Tanto amor guardado tanto tempo. Dar o devido valor às paixões é importante numa época de amores líquidos. Paixões avassaladores que duram uma única noite, um ano, ou aquelas que acontecem unilateralmente, ou seja, que nem chegam às vias de fato e habitam apenas o universo de Platão podem ser tão impactantes quanto uma história construída ao longo de anos com alguém. Nessas horas lembro das sábias palavras de Fabrício Carpinejar, “relações curtas nem por isso são pequenas”.
Depois que acabou de tocar a “nossa” música, veio Arnaldo com aquela letra cartesiana: “com tanto sentimento deve ter algum que sirva”. Não serviu. Que pena. Mas voltar a sentir já é tanto que fico feliz por ser você a ocupar aquele lugar na minha memória.
Ah, eu prometo a você não ficar mais distante do Rescue.