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Fabio Szwarcwald

Por Fabio Szwarcwald, colecionador de arte e gestor cultural Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
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Como o educativo do Arte nas Estações se tornou referência fora do país

Programa investe em tecnologias de relação e de participação, reafirmando a expressão das identidades regionais a partir das itinerâncias do projeto

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Atualizado em 2 dez 2024, 11h47 - Publicado em 2 dez 2024, 11h46
A equipe do educativo em Campo Grande (MS), coordenada pela educadora Marcus Perez, em atividade pública na área expositiva do Arte nas Estações
A equipe do educativo em Campo Grande (MS), coordenada pela educadora Marcus Perez, em atividade pública na área expositiva do Arte nas Estações (Kaique Andrade/Divulgação)
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Quão disruptivo é um carro de boi levar visitantes a uma exposição de pintura? Essa cena aconteceu na cidade de Conselheiro Lafaiete, interior de Minas Gerais, durante uma itinerância do projeto Arte nas Estações, que percorre diferentes territórios do país, exibindo um conjunto de obras de artistas autodidatas, pertencente ao acervo do finado Museu Internacional de Arte Naïf do Brasil, com sede no Cosme Velho.

“Esse é o enfrentamento mais radical que poderia imaginar”, afirma a educadora Janaína Melo, responsável pela concepção e coordenação do programa educativo que acompanha o Arte nas Estações. Em 2023, o projeto percorreu também outras duas cidades do interior de Minas: Ouro Preto e Congonhas. Atualmente, ocupa o Centro Cultural José Octávio Guizzo, em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, com três exposições sequenciais que apresentam um total de 262 obras de 25 artistas autodidatas.

Ao descentralizar o tradicional eixo geográfico das mostras artísticas, o Arte nas Estações, curado por Ulisses Carrilho, investe em tecnologias de relação e de participação de pessoas e educadores, de modo a reafirmar a expressão das identidades regionais por onde passa. “Vejo um valor gigantesco na tecnologia institucional gerada a partir do educativo que acompanha o projeto, pelo que ele tem de disruptivo ao propor uma programação em articulação com o território”, afirma Carrilho.

Durante a etapa em Minas, que é um estado relevante para se pensar a ideia de identidade brasileira, a equipe do projeto educativo desenvolveu com as pessoas, coletivos e agentes culturais de cada cidade diversos desdobramentos poéticos do programa, ao pensar junto com os públicos criaram-se novas formas de aprender, de se relacionar, de comunicar, interagir e, sobretudo, de cocriar a partir das obras e das exposições.

Conforme descrito inicialmente na Lei Rouanet, o educativo do Arte nas Estações previa a realização de oficinas para formar professores, além de ações de acessibilidade e inclusão. “Mas o que fizemos – não sem muita discussão, desafios e reflexão – foi acreditar na pulsão e no desejo que movem a produção dos artistas apresentados pelo projeto. Em muitos casos, são pessoas que trabalham o dia todo exercendo outras funções e trabalho e, ao chegar em casa à noite, ainda encontram tempo para pintar tecendo comentários sobre suas memórias e cotidiano. Acreditamos que essa pulsão é algo comum a todo sujeito, desde que encontre uma ambiência favorável para que o desejo aconteça. Criar esse espaço simbólico foi justamente a missão do educativo que desenvolvemos”, avalia Janaína.

Com esse preceito, a coordenação do projeto propôs que cada participante das oficinas e programas de formação se apropriasse dos conteúdos das exposições e, a partir da sua experiência subjetiva, encontrasse os pontos de conexão e convergência com sua história pessoal. Essa dinâmica se desdobrou para o público visitante, que foi incitado ao mesmo desejo de vislumbrar conexões, imaginar outras histórias e construir legendas para as obras em exibição.

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Atravessado pela natureza de cada um desses territórios, o programa desenvolveu uma agenda popular, próxima à ideia de tradição, que tem relação com aquilo que é pintado e celebrado pelos artistas exibidos nas exposições do Arte nas Estações.

“Acredito que fomos além do inicialmente previsto ao propor aos educadores em formação que envolvessem no processo outros agentes que representassem a cultura daqueles territórios. A partir daí, começaram a aflorar experiências riquíssimas que nós não antevíamos, porque não conhecíamos as particularidades de cada lugar. Portanto, sujeitos autodidatas em educação – vindos de outros campos de saber (assistente social, turismólogo, fotógrafo, grafiteiro, pessoas que não tinham passado por qualquer prática de mediação cultural, mas conheciam o território) – começaram a trazer grupos de capoeira, de teatro, quilombolas, pessoas com profundo conhecimento das ervas, pessoas que cantam, que dançam, blocos de Carnaval e até uma cavalgada. Uma explosão de possibilidades de relação aflorou”, observa Janaína.

As comunidades passaram a integrar suas práticas e seus interesses ao corpo das exposições: “Isso foi a base da nossa formação, que foi se desenhando ao longo do processo. Entendemos que o convite para que as comunidades de cada lugar, com suas vivências e identidades, encontrassem pontos de conexão, seria o caminho mais efetivo para impulsionar no público visitante um desejo genuíno de relação”, revela a educadora.

“Para nossa sorte”, continua Janaína, “também constituímos uma equipe muito poderosa à frente do educativo da segunda etapa do projeto, em Campo Grande, sob a coordenação de Marcus Perez, uma educadora que pesquisa e desenvolve práticas com dança e cultura popular atravessadas pelos estudos das teorias queer. Rapidamente, ela e a equipe identificaram o programa público do Arte nas Estações como um território de possibilidades, sobretudo para os seus. Ela envolveu com o conjunto de exposições a comunidade LGBTQIAPN+ de Campo Grande. Essa ‘virada’ integra ainda mais potência ao programa educativo e reitera que nossa metodologia, que consiste em tecer o programa educativo com as pessoas de cada território, de fato possibilita a criação de um ambiente potente de aprendizagens e, a meu ver, com muitas outras práticas surpreendentes na criação com os públicos”.

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Aula de baile charme em meio à exposição
Aula de baile charme em meio à exposição “Sofrência”, em Campo Grande. (Fabio Souza/Divulgação)

Ao trazer para o centro de seus espaços corpos que muitas vezes permanecem à margem, o projeto torna-se ainda mais relevante. Se a arte é lugar de experimentação, liberdade e transformação, é preciso questionar presenças e ausências. Há, de fato, solidariedade nos territórios em que atua?

“Em Campo Grande, tem coletivos de pessoas dissidentes sexuais que, coordenadas pela Janaína, propuseram uma torção da heterossexualidade para falar sobre amor afrotranscentrado, a partir do quadro “O Clube das Mulheres” (1994), do Dalvan. Isso me remete ao carro de boi diante da exposição A ferro e fogo, em Conselheiro Lafaiete. É um exemplo muito feliz, porque é alegórico, extravagante e radical, e ao mesmo tempo tão próprio de Minas”, observa Carrilho.

Entre as atividades da etapa Mato Grosso do Sul, o educativo tem realizado rodas de danças populares, oficina de bonecas abayomi, aula de baile charme, ativações performáticas inspiradas nas pinturas em exposição, oficinas de literatura e práticas experimentais em diversas linguagens artísticas. Sempre gratuitas, as atividades acontecem dentro da área expositiva. Essa semana, foi apresentado o espetáculo Culto das Travestis, da companhia “De Trans para Frente”, formada por artistas trans e travestis. A performance mistura a cultura ballroom a elementos sensoriais para refletir sobre identidade e visibilidade trans.

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Oficina de ervas. (Kaique Andrade/Divulgação)

Reconhecimento internacional

No último dia 13 de novembro, o programa educativo do Arte nas Estações foi tema de uma mesa durante um ciclo de conferências organizado pela conceituada plataforma La Escuela, em parceria com o Museu de Arte Latino-Americano de Buenos Aires (Malba) e a Pinacoteca de São Paulo. O encontro teve por objetivo gerar espaços de intercâmbio, difusão e reflexão crítica sobre práticas artístico-pedagógicas vinculadas a comunidades relevantes da América Latina.

No evento, Janaína Melo apresentou a fala “Arte nas Estações: atravessamentos entre arte, cultura e comunidade”, com base nas experiências acumuladas na itinerância por Minas Gerais.

Ver essa abordagem conceitual ser validada em encontros internacionais possibilita que estas alianças possam se expandir também em âmbito global, promovendo conexões latino-americanas enraizadas nas práticas locais e em eixos alternativos à centralidade do eixo Rio-São Paulo, com especial atenção para a diversidade cultural dos diferentes estados brasileiros.

Chamo aqui a atenção da iniciativa privada para a relevância da arte como vetor econômico. A cultura é uma ferramenta de alto potencial estratégico na promoção de educação, cidadania e bem-estar coletivo, bem como na redução da violência. É o agente constitutivo e simbólico que nos representa e nos insere no cenário internacional, sendo um dos maiores valores de exportação do País. Sob uma perspectiva interna, é dos dispositivos mais eficazes para conhecermos os diversos ‘Brasis’, de Norte a Sul.

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