A 60ª Bienal de Veneza
Um giro 360º pela maior exposição de arte do mundo e seus arredores
Visitar a Bienal de Veneza é uma experiência profundamente transformadora. Estive na pré-abertura, no mês passado, e voltei com corpo e retina impregnados. É muita riqueza simbólica para processar! Vou levar meus filhos, tenho certeza de que as imagens ali reunidas vão suscitar emoções, reflexões e subjetividades que devem ecoar por muito tempo.
Intitulada Stranieri Ovunque – Foreigners Everywhere (estrangeiros por toda parte, em tradução livre), a maior exposição de arte do mundo foi aberta ao público no dia 20 de abril e seguirá em cartaz até 24 de novembro, exibindo cerca de 330 artistas de diversas nacionalidades.
Curada por Adriano Pedrosa, primeiro latino-americano a ocupar essa posição, a Bienal está dividida em dois núcleos: o “Contemporâneo”, organizado com o apoio de Amanda Carneiro, curadora assistente do Masp; e o “Histórico”, concebido em parceria com a italiana Sofia Gotti. O primeiro apresenta artistas queer, outsiders, autodidatas e indígenas. Já o segundo inclui obras de artistas da América Latina, África, Ásia e do mundo árabe.
O título parte da obra do coletivo parisiense Claire Fontaine, criado em 2004 pela italiana Fulvia Carnevale e o inglês James Thornhill. Por meio de um projeto conceitual, a dupla explora o mesmo texto em diferentes idiomas (em estruturas de neon), com a finalidade de criticar o sistema de arte. A crescente crise de refugiados, as diásporas pelo mundo e os artistas marginalizados em seus próprios territórios são as temáticas centrais desta 60ª edição.
Muitos aspectos me chamaram a atenção. É uma Bienal afinada com as urgências contemporâneas, como a dificuldade de convivência pacífica entre os povos e a questão do meio ambiente. A curadoria valoriza novas autorias e proposições, e investe em artistas invisibilizados. Quatro nações fizeram as suas estreias: Benin, Tanzânia, Timor-Leste e Etiópia, que elegeu a obra de Tesfaye Urgessa para representar a produção daquele território. Outro aspecto interessante é o destaque dado à produção dos países do sul global, enfraquecendo a longa hegemonia da arte eurocentrada.
Fiquei encantado com os pavilhões do Egito, da Alemanha e da Nigéria (este último situado fora da área da Bienal). Entre os estrangeiros que mais me tocaram está o pintor paquistanês radicado nos Estados Unidos, Salman Toor, que eu não conhecia e tem um trabalho fascinante. A obra da artista e ativista indígena do Peru, Rember Yahuarcani, é impactante e remete à produção do genial Jaider Esbell, artista da etnia macuxi, morto em 2021. As pinturas que reconfiguram a narrativa colonial espanhola da também peruana Sandra Gamarra, no pavilhão da Espanha, são outro ponto forte da seleção.
Entre os brasileiros estão alguns de nossos cânones, como Volpi, Tarsila do Amaral e Rubem Valentim. Temos também as presenças de Tomie Ohtake, Lorenzato e Ione Saldanha. Anna Maiolino, homenageada com o Leão de Ouro pela carreira, apresenta uma instalação inédita de grande escala no galpão Casetta Scaffali, no Giardino delle Vergini.
Fiquei muito impressionado com o espaço dedicado à produção recente de Beatriz Milhazes, com quem pude conversar. Foi a melhor reunião de trabalhos da artista carioca que já tive a oportunidade de ver.
“Retornar à Bienal de Veneza, convidada pelo Adriano para desenvolver um projeto especial para o Pavilhão de Artes Aplicadas, no Arsenale (que é uma colaboração entre o V&A – Victoria and Albert Museum e a Bienal), foi gratificante! Esse é o tipo de acontecimento em que a vida surpreende”, celebra ela.
Cinco pinturas monumentais estão no centro do pavilhão. De acordo com Beatriz, os desenhos preparatórios foram desenvolvidos a partir da pesquisa “sobre uma fascinante variedade de tecidos teados, impressos ou bordados. Uma gama de motivos, formas figurativas, elementos abstratos, texturas, campos de cor, infinitas possibilidades de pensar ricas paletas cromáticas”.
Uma longa tapeçaria desenhada por ela, em formato de paisagem, abraça a sala e cria um ambiente circular de diálogo com a arquitetura do pavilhão e sua atmosfera histórica: “É a história do passado que desenvolve as memórias do futuro”, afirma a artista.
Essa conexão entre diferentes temporalidades serve também de fio condutor para o belo mural já muito falado do coletivo Mahku (Movimento dos Artistas Huni Kuin), fundado em 2013 por integrantes da Terra Indígena Kaxinawá, de Rio Jordão, no Acre. Com 700 m2, a obra retrata o mito da “kapewë pukeni”, tendo ao centro a figura de um jacaré que representa uma ponte entre o passado e o presente. A partir de visões experienciadas durante os rituais sagrados da ayahuasca, os artistas fabulam imagens que reverenciam a natureza e seus antepassados.
Exalto também os mantos de Glicéria Tupinambá, que representam a ancestralidade dos povos indígenas; e os trabalhos de Ventura Profana, artista visual de Salvador, Bahia. A ironia das “Civilizações Super Superiores”, do suíço-brasileiro Guerreiro do Divino Amor, é outro ponto bem bacana da visita.
Um prazer à parte é o circuito de mostras paralelas que estão por toda Veneza. Fundação Prada é imperdível. No museu Punta della Dogana, que abriga parte da Coleção Pinault, visitei a individual “Liminal”, do francês Pierre Huyghe, cujos trabalhos multimídia desafiam as fronteiras entre ficção e realidade. É sensacional!
Na Abadia de San Giorgio Maggiore, pude conhecer as esculturas e instalações da artista contemporânea belga Berlinde De Bruyckere, que opera com os temas da morte, da redenção, do sexo, da dor e da memória. Recomendo muitíssimo, trabalho superpotente. Bem próximo de lá, na Fondazione Giorgio Cini, estão em exibição as pinturas em grande escala do nova-iorquino Alex Katz, de 96 anos, em franca atividade. Vale, ainda, uma visita ao Palazzo Grassi, erguido no século 18, onde também se vê a Pinault Collection.