Identidade de gênero em jovens: relatório traz novidades esclarecedoras
Revisão de estudos feita por universidade inglesa propõe maior cuidado

Hillary Class, pesquisadora que dedica seu trabalho a entender e tratar crianças e jovens com questões de identidade de gênero, divulgou um novo relatório com uma ampla revisão feita em quatro anos sobre o tema, na Universidade de Cambridge. O relatório atende a uma encomenda do National Health Service, o equivalente ao SUS na Inglaterra.
O assunto da transição de gênero é polêmico e esteve entre os mais comentados no Congresso Americano de Psiquiatria. Aqui não é diferente. Também somos cada vez mais demandados por pacientes com questões de identidade de gênero.
Em seu relatório, Class é bastante objetiva: praticamente todas as revisões concluíram que não há evidências mínimas razoáveis sobre segurança ou eficácia para intervenções de bloqueio hormonal, uso de hormônios ou cirurgias de afirmação de gênero.
A pesquisadora comparou ainda as diretrizes clínicas feitas por governos ou sociedades médicas. Até 2018, houve várias diretrizes recomendando esses tratamentos, mas baseados em pouquíssimos estudos e de baixa qualidade. A partir de 2020, a partir de revisões sistêmicas que surgiram com o tempo, houve o predomínio de diretrizes desencorajando intervenções hormonais ou cirúrgicas até que haja evidências mais concretas. Tais determinações já valem para países como França, Itália, Dinamarca, Suécia, Noruega, Finlândia e Reino Unido.
A informação é ainda mais valiosa para o Brasil neste momento, onde a discussão é grande acerca do assunto, especialmente depois que o Judiciário criticou a posição do Conselho Federal de Medicina (CFM), que só permite utilização de hormônios e cirurgias após a maioridade, aos 18 anos.
Segundo Hillary Class, seu relatório é “sobre incerteza, complexidade e a necessidade de ouvir, aprender e, acima de tudo, discutir e colaborar”. Segundo ela, num tempo em que “as opiniões são frequentemente expressas de forma mais agressiva do que em qualquer outra área de atendimento clínico, de modo que muitas pessoas têm medo de expressar uma opinião; esta é uma situação perigosa para médicos e pacientes”.
Para a pesquisadora, o primeiro dilema é entender os pacientes. A população de jovens que se apresentou aos serviços de gênero nos últimos anos é claramente diferente daqueles que se apresentaram há uma década. À época, o serviço oferecia um modelo terapêutico de atendimento, e a maioria dos pacientes eram homens pré-púberes registrados no nascimento, apresentando incongruência de gênero desde a primeira infância. Uma minoria tinha incongruência de gênero persistente e recebeu hormônios masculinizantes ou feminilizantes a partir dos 16 anos, enquanto a maioria cresceu e se tornou adulta cis atraída pelo mesmo sexo.
Há cerca de 10 anos, houve um aumento dramático no número: de menos de 50 por ano antes de 2009 para cerca de 2.500 em 2019. A mistura de casos também mudou para mulheres registradas no nascimento, apresentando-se no início da adolescência, com problemas complexos adicionais, incluindo histórico de trauma ou experiências adversas na infância, depressão, ansiedade, neurodiversidade e uma série de problemas psicossociais.Há ainda quem defenda que o sofrimento relacionado ao gênero pode ser um fenômeno transitório, variando caso a caso, não podendo ser enquadrado em uma “fórmula” única de tratamento. Um desafio gigantesco.
Ainda de acordo com Class, o segundo dilema é o papel da puberdade no desenvolvimento psicossexual e de identidade de cada indivíduo. A prática de pausar a puberdade foi iniciada na Holanda e posteriormente adotada no Reino Unido e em outros países. A utilização de bloqueadores da puberdade para esse propósito foi inicialmente relatada em um único estudo de caso. Em seguida, foi logo adotada na Holanda, com constatação de melhorias modestas na saúde mental em um estudo, mas sem um grupo de comparação e nenhum impacto na disforia de gênero ou satisfação corporal. As tentativas de replicar as descobertas da equipe holandesa não apresentaram quaisquer resultados positivos mensuráveis.
Ainda assim, desde 2014, os bloqueadores da puberdade passaram de um protocolo somente para pesquisa para estarem disponíveis na prática clínica de rotina e foram administrados a um grupo mais amplo de pacientes.
A revisão sistemática da Universidade de York não encontrou evidências de que os bloqueadores da puberdade melhorem a imagem corporal ou a disforia, e evidências muito limitadas de resultados positivos para a saúde mental, que sem um grupo de controle poderiam ser causados pelo efeito placebo ou suporte psicológico concomitante.
A adoção de um tratamento com benefícios incertos sem um exame mais aprofundado é um afastamento significativo da prática estabelecida.
Por fim, o terceiro dilema listado por Class em seu relatório é a fraqueza da base de evidências que orienta as decisões de tratamentos. Tal fraqueza não se limitou ao tratamento com bloqueadores da puberdade. A base de evidências que sustenta as intervenções médicas e não médicas foi consideravelmente fraca, em comparação com outras áreas da prática pediátrica. Isso foi particularmente marcante no contexto da prescrição de medicamentos. A maioria dos estudos teve problemas como períodos de acompanhamento inadequados, altas taxas de perdas, grupos de comparação inapropriados ou pouco claros e intervenções confusas, limitando as conclusões que poderiam ser tiradas.
É preciso considerar ainda se os jovens têm capacidade ou competência para consentir com o tratamento para disforia de gênero. Os responsáveis pelas prescrições que assinam são os médicos. Eles também devem garantir que o paciente esteja plenamente informado sobre os riscos e benefícios da intervenção e, novamente, a fraca base de evidências dificulta o fornecimento de informações confiáveis ao paciente, especialmente sobre resultados de longo prazo de diferentes tratamentos. Como informar se há carência de dados?
Segundo a Universidade de Cambridge, a revisão de Hillary Class fez 32 recomendações sobre a melhor forma de fornecer serviços para esse grupo de crianças e jovens. A maioria delas se concentrou em trazer o atendimento de volta aos padrões e processos usuais que são fundamentais para uma boa prática clínica.
Class encerra seu documento com um pedido inspirador, para médicos e pacientes: “Deve haver um fim ao discurso hostil e agressivo, uma união de organizações profissionais e a humildade de reconhecer os limites da ciência e que ninguém tem todas as respostas”.
Fabio Barbirato é psiquiatra pela ABP/CFM e responsável pelo Setor de Psiquiatria Infantil do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa do Rio. Como professor, dá aulas na pós-graduação em Medicina e Psicologia da PUC-Rio. É autor dos livros “A mente do seu filho” e “O menino que nunca sorriu & outras histórias”. Foi um dos apresentadores do quadro “Eu amo quem sou”, sobre bullying, no “Fantástico” (TV Globo).