Identidade de gênero: como a psiquiatria explica o assunto?
Visando a redução de estigma, a partir de 2025 a transexualidade sai do grupo de doenças mentais e passa a ser entendida como saúde sexual

Esta semana, decidi dar um uso diferente a este espaço. Convidei um querido amigo, parceiro de trabalho, para compartilhar com os leitores um pouco do seu enorme conhecimento. Francisco Assumpção Jr. é Psiquiatra da Infância e da Adolescência, tem mestrado, doutorado e pós-doutorado em Psicologia pela PUC-SP; é professor livre-docente pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP); professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP) e membro das Academias Paulista de Medicina e Psicologia.
Propus ao Francisco Assumpção que respondesse algumas das perguntas mais frequentes quando o assunto é identidade de gênero. Espero que gostem! Boa leitura!
O que você poderia falar, sobre os estudiosos do Desenvolvimento, sobre a questão da Identidade de Gênero? É verdade que até pesquisadores do Desenvolvimento, que discordam em muita coisa, pensam de forma semelhante quanto à Identidade de Gênero x Desenvolvimento?
Entre zero e dois anos podemos observar o exercício dos reflexos biológicos a partir de uma inteligência sem pensamento ou representação, sem linguagem e sem conceitos, prática. As construções efetuam-se apoiadas em percepções e movimentos e o desenvolvimento da sexualidade é ligado a essa exploração corporal.
Entre os dois e os três anos e meio de idade dá-se o aparecimento da função simbólica e da representação e assim, a criança, com dois anos aprende as palavras menino-menina reconhecendo seu próprio sexo, mas não identifica corretamente o dos outros. Aos 3 anos reconhece o sexo do outro baseado em características físicas e aos 4 anos classifica o sexo por critério gerais.
Entre quatro e cinco anos e meio podemos observar o egocentrismo com realismo moral, sem noção de transformação e raciocínio por configurações, sendo que aos 5 anos ela já percebe as diferenças sexuais entre ela e os adultos no que se refere a tamanho e forma embora haja ausência de checagem de realidade e presença de um pensamento unidirecional e pré-operatório.
Entre os cinco anos e meio e os oito anos tem-se presença de regulações representativas articuladas com a percepção de diferenças sexuais entre adultos quanto a tamanho e forma. Ao redor dos seis e sete anos de idade observa-se constância no conceito de sexo e estabilidade da identidade sexual. Dessa forma, podemos dizer que a ausência de pensamento abstrato e de capacidade de elaboração de projetos existenciais, de avaliação de possibilidades e de probabilidades, com um pensamento concreto e embasado em dados empíricos dificulta a estruturação da própria sexualidade, enquanto comportamento extremamente complexo.
Esses são dados empíricos, porém várias são as escolas de desenvolvimento e a esses modelos teóricos se contrapõe à ideia que as identidades sexuais e de gênero são construídas somente em função das demandas sociais uma vez que são observadas em diferentes culturas porém obedecendo padrões vinculados ao desenvolvimento cognitivo e afetivo.
Marty (2021), um pensador francês, frisa que ao se ignorar as teorias de desenvolvimento, cria-se um paradoxo com maior ênfase no social que desvaloriza através do seu discurso, normas gerais em função do testemunho subjetivo que engaja o indivíduo. Aponta assim o que denomina sociologização do inconsciente com a substituição dos fatores psíquicos pelos sociais e culturais minimizando-se os fenômenos estruturais do desenvolvimento.
O que seria Identidade Gênero em seu olhar hoje? E as 31 Identidades de Gênero faladas hoje em dia, qual sua opinião?
A disforia de gênero, outro nome utilizado para descrever o Transtorno de Identidade de gênero, deriva de uma palavra grega cujo significado é “mal estar”. Corresponde à sensação de desconforto, de ansiedade e de depressão constante sendo composta por palavras que significam “dificuldade” + “portador”, o que remete o termo disforia de gênero a um desconforto persistente com características sexuais ou marcas de gênero, que remetem ao gênero atribuído ao nascer.
Inicialmente e até 1990 foi classificada como transtorno de identidade de gênero, porém a partir de 2013 com o DSM-5 passou a ser chamada de disforia de gênero privilegiando a questão do sofrimento e na redução do estigma. Com a CID 11ª, que deve entrar em uso no Brasil a partir do próximo ano, a Transexualidade sai do grupo das doenças mentais e entra no de saúde sexual visando a redução de estigma. Cabe lembrar que estamos falando de modelos classificatórios com finalidade principalmente estatística e epidemiológica.
Quanto aos diferentes tipos de identidade de gênero acredito que, trata-se mais de uma questão semântica do que realmente uma classificação uma vez que se pulveriza as diferentes formas de relacionamento, sem uma sistematização de objeto, de forma ou de qualquer categoria que permita a estruturação de um raciocínio categorial.
Há algum estudo robusto, que demonstre a possiblidade de uma criança poder já ter uma escolha de Gênero entre 6 e 10 anos?
Consciência do Eu é definida como a capacidade de sabermos que somos nós mesmos, em oposição ao exterior, em atividade contínua, nos constituindo através de todas as nossas vivências e condutas. Classicamente esse conceito de consciência apresenta quatro características formais que seriam atividade – o agir, sentir, perceber, falar, atuar, e experimentar a si mesmo e ao outro, no desempenho de sua atividade; unidade – “somos um naquele momento”, o que corresponde ao “ser-si-mesmo”, identidade – “somos a mesma antes, agora e depois, apesar de todas as alterações sofridas por nós mesmos (inclusive corporalmente) e pelo mundo,” e consciência de Eu em oposição ao Não-Eu, relacionada ao próprio controle da realidade.
A criança passa por uma indeterminação inicial Eu-Mundo, que dá lugar a uma identidade própria e a mundo circundante, a partir de suas próprias experiências, constituindo a ambas as categorias simultaneamente.
O construir a si mesmo, e concomitantemente o outro e o espaço, já se inicia no período sensório-motor (entre zero e dois anos), a partir das ações sobre si mesmo e sobre os objetos, ações essas que vão se aperfeiçoando a partir de esquemas reflexos inatos para outros, mais elaborados. A criança conhece seu corpo, e a partir daí suas experiências sensoriais, constitui primeiramente o esquema corporal, ponto de partida para a posterior elaboração da consciência do Eu, mais sofisticada e abstrata, na medida em que seu instrumental cognitivo se aperfeiçoa. Assim, é a partir do próprio corpo que gradualmente ela construirá sua identidade.
Esse processo permite que ela perceba sensorialmente e sem o raciocínio lógico (sua percepção inicial é pré-lógica) quem é (consciência de EU), saber o que as pessoas acham que é (consciência de Realidade) dentro de uma unidade de tempo (que constitui o momento presente).
Os estudos sempre terão que ser analisados em função da teoria de desenvolvimento considerada, tanto do ponto de vista cognitivo no qual o pensamento formal, capaz de trabalhar com probabilidades e possibilidades só surge durante a adolescência; como do ponto de vista afetivo a partir do qual o pensar-se a maturidade emocional e afetiva depende não somente do desenvolvimento cognitivo (parametrizável mais facilmente) mas também da relação desse indivíduo com seu mundo que deve ter lhe possibilitado maior capacidade de autonomia e, consequentemente, de responsabilidade sobre as consequências de suas decisões.
O que seria Transtorno de Identidade de Gênero? Há relação com as tão faladas 31 Identidade de Gênero?
Em crianças, friso que aqui me refiro somente a crianças, ao DSM-5 TR (APA; 2022) o quadro (F64.2) é descrito como apresentando
- Incongruência acentuada entre o gênero experenciado/expressado e o gênero designado de uma pessoa, com duração de pelo menos seis meses, manifestada por no mínimo seis dos seguintes (um deles deve ser o Critério A1):
- Forte desejo de pertencer ao outro gênero ou insistência de que um gênero é outro (ou algum gênero alternativo diferente do designado),
- Em meninos (gênero designado), uma forte preferência por vestir roupas femininas típicas ou simular trajes femininos; em meninas (gênero designado), uma forte preferência por vestir somente roupas masculinas típicas e uma forte resistência a vestir roupas femininas típicas,
- Forte preferência por papeis transgêneros em brincadeiras de faz de conta ou de fantasias,
- Forte preferência por brinquedos, jogos ou atividades tipicamente usados ou preferidos pelo outro gênero,
- Forte preferência por brincar com pares do outro gênero,
- Em meninos (gênero designado), forte rejeição por brinquedos, jogos e atividades tipicamente masculinos e forte evitação de brincadeiras agressivas e competitivas; em meninas (gênero designado), forte rejeição de brinquedos, jogos e atividades tipicamente femininas,
- Forte desgosto com a própria anatomia sexual,
- Desejo intenso por características sexuais primárias e/ou secundárias compatíveis com o gênero experienciado.
B – A condição está associada a sofrimento clinicamente significativo ou a prejuízo no funcionamento social, acadêmico ou em outras áreas importantes da vida do indivíduo.
Cabe ressaltar que esses critérios são inespecíficos e dependem da subjetividade do avaliador que, por isso deve ser de extrema competência.
Quanto a relação das 31 Identidade de Gênero essa questão me parece mais de natureza filosófica do que médica e essas descrições se constituem em denominações sociais de preferências específicas e não a um quadro classificatório.
Identidade de Gênero e Homossexualidade seriam a mesma coisa? E qual a diferença?
Homossexualidade corresponde a pessoas que são emocionalmente e fisicamente atraídos por pessoas do mesmo sexo ao passo que transexual corresponde a uma pessoa cuja identidade e/ou papel de gênero é diferente do gênero atribuído ao nascimento e ligado ao sexo genético e aparência do corpo. Assim uma das categorias refere-se a atração sexual pelo mesmo sexo ao passo que a outra refere-se a identificação do próprio sexo de acordo ou não com o sexo biológico.
Qual recomendação você daria para os pais, que tenham dúvidas sobre esta questão de Identidade de Gênero dos seus filhos?
Em primeiro lugar pensar no que está acontecendo não a partir de ideias pré-estabelecidas e conceituais, mas sim observando as reais necessidades da criança (ou do adolescente) que podem estar subjacentes à questão.
Em segundo lugar lembrar que a insegurança da criança faz parte de seu desenvolvimento e que para resolvê-la, ela se vale dos adultos (pais e escolas) para que esses lhe balizem o caminho e auxiliem nas escolhas uma vez que ela, por seu desenvolvimento cognitivo e afetivo, não é capaz de prever e avaliar consequências, o que lhe assusta e dificulta as escolhas verdadeiramente.
Consequentemente decisões devem ser tomadas a partir da clarificação das consequências possíveis e da capacidade da criança (ou do adolescente) se responsabilizar por elas. A procura de profissionais competentes pode ser um auxiliar de valor nas decisões que serão tomadas e que devem sempre ser muito bem pesadas e refletidas.
Fabio Barbirato é psiquiatra pela ABP/CFM e responsável pelo Setor de Psiquiatria Infantil do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa do Rio. Como professor, dá aulas na pós-graduação em Medicina e Psicologia da PUC-Rio. É autor dos livros “A mente do seu filho” e “O menino que nunca sorriu & outras histórias”. Foi um dos apresentadores do quadro “Eu amo quem sou”, sobre bullying, no “Fantástico” (TV Globo).