Enchente no RS: é possível conviver com tragédias sem se abalar?
Empatia pelos momentos difíceis atravessados por outras pessoas pode comprometer o sistema emocional
![Mãos se aproximam e quase se tocam.](https://vejario.abril.com.br/wp-content/uploads/2024/05/hand-5216581_1920.jpg?quality=70&strip=info&w=1280&h=720&crop=1)
Desde que começaram as terríveis enchentes no Rio Grande do Sul, tenho escutado, em diferentes círculos, uma sensação de cansaço e até esgotamento face à dor por que passa o povo gaúcho. As imagens dos desabrigados, das casas que viraram ruínas, dos animais à deriva, das crianças desamparadas, tudo é capaz de abalar consideravelmente o emocional de quem está distante da tragédia. É como se o aparentemente infindável sofrimento alheio também fosse um pouco nosso.
Antes de mais nada, convém dizer que a capacidade de ter empatia pelos outros é mais que sinal de humanidade, é também sinal de saúde. Ela é um dos fatores que nos permitem conviver em sociedade de forma civilizada. Estranho seria testemunhar imagens tão desoladoras como a que estamos vendo sem se abalar (é justamente a falta de empatia um dos principais sintomas de uma personalidade antissocial).
No entanto, é sutil a fronteira que separa a preocupação natural com terceiros do excessivo sofrimento. O ato de colocar-se no lugar dos outros impõe um certo limite. A psicologia diferencia dois tipos de empatia: a excessiva e a empatia afetiva, quando o gesto de se colocar no lugar do outro ocorre de forma acolhedora e saudável, sem uma espécie de “efeito esponja”, com a somatização de questões que sequer são suas. Quem tem empatia demais, provavelmente, sofre de ansiedade.
Um detalhe importante deste tipo de postura de empatia excessiva é que a pessoa deixa de sofrer por suas próprias questões para se dedicar exclusivamente às dos outros, empurrando para debaixo do tapete as questões que deveria estar enfrentando.
Entre crianças e adolescentes, por exemplo, um dos sinais mais importantes de ansiedade é o medo da chuva, o temor de que uma simples queda d’água possa virar um temporal, que a inundação a impeça de sair ou ver os pais ou que eles fiquem presos em algum lugar. Vira uma bola de neve: um chuvisco serve de gatilho para crise de ansiedade. A tragédia no Rio Grande do Sul é enorme, mas não significa que acontecerá toda vez que gotejar do céu; depende de um monte de fatores variáveis para que isso ocorra (quantidade de chuva, topografia do local, prevenção por parte das autoridades, entre outros fatores).
Alguém com ansiedade pode apresentar um excesso de empatia, uma espécie de pensamento catastrófico que o paralisa e, como consequência, gera sofrimento. Viver pensando no futuro – o próprio ou o do outro – não é saudável e pode acabar atrapalhando o desenvolvimento de crianças e adolescentes na escola, pois prejudica a sociabilidade e a capacidade de atenção, fundamentais nesta etapa da vida, apenas por medo de tomar iniciativas.
Ter empatia não significa se apagar ou se paralisar. Ao contrário, é a habilidade de se colocar no lugar do outro, sentir o sofrimento do outro e agir. Abandonar a zona de conforto e tomar atitudes proativas. E isso serve tanto para uma tragédia, como a que acaba de acontecer no Rio Grande do Sul, quanto para alguém que está sofrendo bullying na escola. No caso das enchentes gaúchas, engajar-se em campanhas de doação, recolher mantimentos, dedicar-se a atividades que tragam algum tipo de benefício a quem precisa pode fazer com que essas pessoas se sintam mais confortáveis: a empatia aplicada de forma saudável e colaborativa.
Em voos de avião, os comissários sempre orientam, antes da decolagem, que em caso de despressurização, os passageiros acomodem as máscaras primeiro em si mesmo e só depois em quem está ao lado. A instrução tem lógica pois se esta ordem for invertida, há chances de o passageiro desmaiar, sem conseguir ajudar o outro ou a si mesmo. A regra também vale para a vida: apenas estando saudável é possível apoiar alguém em sofrimento.
Fabio Barbirato é psiquiatra pela ABP/CFM e responsável pelo Setor de Psiquiatria Infantil do Serviço de Psiquiatria da Santa Casa do Rio. Como professor, dá aulas na pós-graduação em Medicina e Psicologia da PUC-Rio. É autor dos livros “A mente do seu filho” e “O menino que nunca sorriu & outras histórias”. Foi um dos apresentadores do quadro “Eu amo quem sou”, sobre bullying, no “Fantástico” (TV Globo).