Suplementos, como creatina, podem causar alterações em exames?
A suplementação com creatina pode elevar a creatinina sérica sem comprometer a função renal real.

Dr. Fabiano M. Serfaty: O uso de suplementos alimentares tem se tornado cada vez mais frequente, especialmente entre indivíduos que buscam melhorar o desempenho físico e a composição corporal. Entre esses, a creatina monohidratada destaca-se como uma das substâncias mais consumidas mundialmente. Embora geralmente segura quando utilizada de forma adequada, sua suplementação pode interferir em parâmetros laboratoriais, em especial na interpretação de marcadores bioquímicos renais. Para esclarecer os potenciais impactos diagnósticos desses suplementos, conversamos com o Dr. Helio Magarinos, médico, patologista clínico e diretor do Richet Medicina & Diagnóstico – Rede D’Or. Como os suplementos podem interferir nos resultados de exames laboratoriais?
Dr. Helio Magarinos: Existem, basicamente, três mecanismos de interferências causadas por suplementos e medicamentos nos resultados de exames laboratoriais: O primeiro ocorre quando a substância ingerida interfere diretamente nas reações químicas ou imunológicas do teste, chamada de interferência analítica. O segundo diz respeito a alterações do metabolismo ou concentração dos analitos, chamada de interferência fisiológica. Já no terceiro, chamado de interferência farmacológica, ocorre quando há modulação da função dos órgãos, como fígado e rins, causada diretamente pela ação do suplemento ou medicamento.
Dr. Fabiano M. Serfaty: O que é a Creatina e como ela funciona?
Dr. Helio Magarinos: A creatina é sintetizada no fígado, rins e pâncreas a partir de aminoácidos arginina, glicina e metionina. Após sua produção ou ingestão por meio da dieta ou suplementação, é transportada para os músculos, onde é convertida em fosfocreatina, por ação da enzima creatina quinase, e atua como reserva rápida de energia, regenerando a principal fonte de energia celular, a adenosina trifosfato ou ATP. Isso acontece especialmente durante esforços de curta duração e alta intensidade. Um pequeno percentual (1 a 2%) da creatina corporal é convertido espontaneamente em creatinina, que é excretada pelos rins. Esse processo de conversão é constante e serve como base para o uso da dosagem de creatinina no sangue como marcador indireto da função renal, já que a creatinina é excretada exclusivamente pelos rins sem que haja reabsorção. Por este motivo, aumentos dos níveis sanguíneos da creatinina indicam um comprometimento na capacidade renal de filtração, medida através da Taxa de Filtração Glomerular (TFG).
Dr. Fabiano M. Serfaty: Como o uso de creatina pode interferir nos resultados de exames laboratoriais?
Dr. Helio Magarinos: A suplementação com creatina pode aumentar os níveis de creatinina e isso ocorre porque a creatinina ingerida é convertida em creatinina, aumentando os seus níveis sanguíneos; sem, entretanto, afetar o processo de filtração glomerular. Ou seja, a ingestão de creatina aumenta a creatinina, mas não tem relação com a função renal. Uma interpretação ignorada sobre o uso ou os efeitos da ingestão de creatina pode confundir a conduta médica.
Dr. Fabiano M. Serfaty: O que deve ser feito nestes casos?
Dr. Helio Magarinos: Primeiro, é importante que o laboratório e o médico que solicitou o exame estejam cientes do uso de creatina. Para que não haja interferência, deve-se interromper o uso de creatina por pelo menos 2 dias antes da coleta de sangue. Quando se quer tirar a dúvida se pode ter havido interferência, deve ser feito um exame complementar, a dosagem de Cistatina C no sangue, que é um componente derivado de células e não se altera com a ingestão de creatina. Portanto se tivermos um resultado de creatinina elevado e cistatina c normal, na mesma amostra, a probabilidade de que tenha ocorrido interferência da creatinina é praticamente certa.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Que outros suplementos podem interferir em exames laboratoriais?
Dr. Helio Magarinos: Um interferente relativamente comum e já bem conhecido dos médicos é a Biotina (vitamina B7), utilizada para embelezamento de unhas e cabelos. A biotina interfere diretamente em alguns testes imunológicos, como dosagens hormonais, como TSH e PTH e marcadores tumorais, como o PSA, que usam a enzima biotinidase na sua reação. Mas isso não acontece com todos os testes, depende do tipo que foi utilizado. Assim como acontece na dosagem de creatinina, é recomendado a suspensão do uso de biotina por pelo menos 48 horas antes da coleta de sangue. Nos casos de suspeição de interferência é recomendada a repetição do teste após a suspensão do uso de biotina por 48 horas ou mais. Outros exemplos: Suplementos proteicos, quando utilizados em excesso podem causar aumentos transitórios nos níveis de ureia e ácido úrico. A informação da sua utilização é igualmente importante. O uso de cafeína em excesso pode causar alterações em exames cardiovasculares, aumento da pressão arterial, dosagem de cortisol e glicemia, devendo ser evitados na véspera da realização destes testes.
Dr. Fabiano M. Serfaty: Quais orientações você considera fundamentais para médicos e pacientes diante destas possíveis interferências laboratoriais?
Dr. Helio Magarinos: O uso de alguns suplementos, devidamente recomendados por especialistas, nas doses usuais, podem causar interferências em alguns exames laboratoriais, podendo confundir a interpretação e a conduta clínica. Um exame clínico e anamnese (conversa investigativa com o paciente), além da informação corretamente fornecida ao laboratório e ao médico são de fundamental importância. Resultados de exames diagnóstico sem uma correta correlação com a clínica do paciente são totalmente incompletos e podem confundir ao invés de ajudar em alguns casos.