Zé da Galera encontraria cardápio farto a cornetadas
Torcedor eternizado por Jô Soares talvez hoje cobrasse uma redescoberta dos maestros ou prioridade no combate às violências banalizadas nos estádios
Jô Soares era generoso com o esporte, e vice-versa. A mitologia do futebol frequentava o almanaque de personagens que tanto nos divertiam, nos refletiam. Muitos não envelhecem.
Do mundo da bola, Jô regularmente extraía papos, tiradas, tipos emblemáticos. Transitavam entre o riso, a reflexão e o sonho:
A tabela com Pelé dourada pelo escracho antológico de Golias, joia da família Trapo perenizada na internet. O corinthiano arrependido por ter batizado o filho de Rivellino, migrado para as Laranjeiras (singela homenagem ao Flu do coração). O bandeirinha que sabotava o juiz. E, claro, Zé da Galera.
“Bota ponta, Telê” virou mantra pré-Copa. Perpetua-se entre os inúmeros bordões escavados por Jô no cotidiano nacional. Sintetizava o desejo de grande parte dos milhões de técnicos país afora. Mimetizava nosso esporte mais popular: o pitaco.
O impossível nos afanou aquela Copa como quem rouba o céu de uma pipa. O caneco evaporou do bolso não por falta de, como se diz agora, extremas. No fatídico 5 de julho, nada derrubaria o pacto entre os italianos e os caprichos divinos. Nem por isso a jornada deixou de eternizar aquele time encantador – sob a batuta de Cerezo, Falcão, Sócrates, Zico – e o não menos insubstituível Zé da Galera.
Hoje o corneteiro trocaria o orelhão pelas redes e o rumo da prosa. Diante do revalorizado 4-3-3, incorporaria outros apelos.
Talvez pedisse para o Brasil de Tite jogar igual ao de 82, mais pensadores do que corredores. Talvez suplicasse para os times redescobrirem o 8. Arrascaeta e o ressuscitado Ganso lembram o quão precioso sempre há de ser um maestro.
Talvez Zé sugerisse aos clubes tornarem-se efetivamente sócios e vacinarem o diamante bruto em comum contra miopias, inépcias e intransigências que atrasam o pulo do gato. Sem o amadurecimento político e administrativo, alertaria ele, fica difícil consumar os ganhos ambicionados por manobras como a conversão em Sociedade Anônima e implantação de uma Liga inspirada nas primas ricas europeias.
Zé da Galera talvez cobrasse também um VAR menos palpiteiro, restrito aos tira-teimas decisivos da proposta original. Estenderia o pedido aos reclamões nos gramados, igualmente nocivos à fluidez do espetáculo.
Último romântico, Zé sonharia com o discernimento da arquibancada entre o indispensável carnaval e uma inadmissível concessão a ofensas. Pressionaria autoridades por punições esportivas que, ao lado de multas e campanhas educativas, ajudassem a dirimir as violências racistas, homofóbicas, misóginas, xenofóbicas derivadas de preconceitos estruturais. Desconfiaria de que os rigores previstos na Nova Lei Geral do Esporte sejam insuficientes para erradicá-las.
Aos parlamentares, ainda lembraria o compromisso constitucional com o interesse público e com as urgências escancaradas pelos 33 milhões de conterrâneos sob a agonia da fome e os 35 milhões sem água tratada. Estranharia deputados federais criarem um Grupo de Trabalho (sic) para acompanhar os preparativos da Canarinho ao Catar.
A iniciativa de José Rocha (União Brasil/BA) integra-se a um “conjunto de esforços para resgatar a imagem de país do futebol”. Às voltas com a inflação (só o café subiu 60% em 12 meses), Zé provavelmente encontraria dificuldade em compreender a justificativa.
Tinhoso, custaria também a acreditar que clubes, jogadores e jogadoras – protagonistas dessa indústria – mantenham representação relativamente desproporcional às suas estaturas econômica, sociocultural, histórica. Eles detêm, por exemplo, peso inferior ao das federações nas urnas da CBF.
Zé da Galera não resistiria. Mesmo escaldado pelas troças do inacreditável recorrentes à vida de torcedor – e de brasileiro –, acabaria tentado a sequestrar o bordão de outro personagem do Jô imune ao tempo: o cego incrédulo com as notícias lidas pelo amigo. “Depois, o cego sou eu”, ironizava.
Felizmente as realidades paralelas não escapam ao humor.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.