Ventos que movimentam as batutas do nosso futebol
Enquanto Ancelotti acorda a esperança de a seleção encontrar o passado reluzente, trocas nos gabinetes precisam se conectar com o futuro

Absurdos em série desafiam nossa sensibilidade. Do assalto aos aposentados à fome premeditada, do racismo crônico nos estádios à corrupção endêmica, indecências se banalizam com a fluidez de um rio subterrâneo.
Nem um marciano recém-chegado estranharia os desmandos no trono do futebol. Qualquer surpresa quanto à saída de Ednaldo Rodrigues é desautorizada pela emblemática rotina: cinco dos seis últimos presidentes deixaram a CBF acusados de irregularidades administrativas e financeiras.
Suspeito de fraude eleitoral, Ednaldo integra o escrete cadenciado pela bilionária botija. Nela se lambuzam sucessivos cortesãos, detalha reportagem da Piauí.
O patrimonialismo que historicamente entope escalões públicos e privados é quase um esporte nacional. No Brasil dos conchavos, saneamentos éticos exigem persistência. Revogam a tolerância a paliativos e discursos protocolares.
Só a ingenuidade ou o esquecimento levariam a acreditar que mudanças no varejo garantem correções no atacado. Não raramente dissimulam manobras de autopreservação.
Escândalos como o do INSS reforçam a urgência de reconstruções estruturais, culturais, morais. Impossível empreendê-las sem um empenho cívico imune à resignação.
A lógica aplica-se às instâncias diretivas e regulatórias da indústria esportiva. O jogo de alianças que aclamaram e fritaram Ednaldo em menos de dois meses avaliza agora o sucessor, Samir Xaud, cujo cacife ancora-se na genética política do pai, comandante por quatro décadas na Federação de Roraima.
A troca de bastão não assegura cores distintas no horizonte. Até os otimistas encontrariam dificuldade em projetá-las.
Promessas de descentralização e transparência, de profissionalização da arbitragem, de pavimentação da sonhada liga, nenhuma delas inédita, perdem-se ao vento sem um aprumo na governança. Começa por confiar aos clubes o protagonismo decisório condizente com o peso econômico e sociocultural que detêm no mundo da bola.
Logo o vento levará os gabinetes novamente à sombra e devolverá o gramado aos holofotes. Incidirão sobre a largada de Carlo Ancelotti, sobre as estratégias do badalado treinador para reabilitar nossa seleção e conduzi-la ao reencontro com a identidade criativa, com a beleza preservada no imaginário, com o caneco mundial.
Logo a esquina passará a discutir as táticas, as escalações, as prosas do vitorioso italiano. Logo bastará uma faísca de melhora para reacender o ufanismo. Logo ninguém mais vai perceber a banda ao fundo, a necessidade de rever a partitura. E assim a banda fica à vontade para manter o mesmo compasso, os mesmos arranjos.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.