Um painel do universo esportivo e da natureza humana
Ao iluminar um Galvão Bueno sem filtros, série documental evoca filiações materiais e imateriais ao esporte espetacularizado pelo rádio e pela TV
Os cinco capítulos da série documental Galvão: olha o que ele fez (Globoplay) carregam a grande virtude das melhores biografias. A história do personagem é a história do universo ao qual pertence.
Na primorosa “Noel Rosa: uma biografia”, de João Máximo e Carlos Didier, a vida do poeta conduz um mergulho pelo Rio, pelo Brasil. Os jornalistas Sidney Garambone e Gustavo Gomes alcançam mérito equivalente ao se debruçarem sobre os feitos de Galvçao Bueno – para o bem e para o mal. “É um Galvão sem filtros”, orgulha-se Garambone.
Costuradas com habilidade pela dupla, as 60 entrevistas e as incursões por Rio, São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul, Japão, Estados Unidos desembocam em faces originais do velho conhecido. Revelam histórias, manias, vaidades, humanidades do comunicador que, resume o colega Cléber Machado, mudou o status da narração.
Elas expressam, de quebra, a arquitetura sociocultural do esporte, fincada na fantasia do rádio e da tevê. Um carrossel de temporalidades embalado pela edição sagaz e pela trilha sonora bem calibrada.
As vitórias de Senna, o tetra, o penta, e outros afagos no imaginário afetivo, somam-se a singularidades e controvérsias que tanto desmistificam o poderoso craque da comunicação quanto justificam sua popularidade. Espelham a riqueza simbólica do esporte e os meandros da natureza humana.
O documentário reflete, por tabela, a grandeza narrativa sem a qual o futebol não seria um lubrificante social tão vigoroso e uma indústria trilionária. A história de Galvão é a histórias das vozes vibrantes, suas tiradas, seus eternos bordões, que pavimentam nossa irreversível filiação à matriz esportiva.
Há muito o cineasta, pesquisador e crítico de cinema Luiz Baez é graduado com louvor nesse universo. Torcedor de almanaque, ele generosamente compartilha uma resenha sobre a série recém-lançada:
“Era 30 de junho de 1999, data que marcaria a estreia de Ronaldinho Gaúcho pela Seleção Brasileira. O Brasil enfrentava a Venezuela pela fase de grupos da Copa América quando, aos 27 do segundo tempo, a então promessa do Grêmio foi chamada pelo treinador Vanderlei Luxemburgo para entrar em campo. O craque precisou de apenas três minutos para anotar um belo gol, após chapéu no zagueiro Rey. Tão memorável quanto a jogada de efeito, o bordão “olha o que ele fez“, improvisado na cabine de transmissão, se consagrou no imaginário popular de tal forma que sintetiza a carreira do narrador Galvão Bueno. Não sem motivo, foi escolhido pelos diretores Gustavo Gomes e Sidney Garambone como subtítulo da minissérie documental.
As cinco palavras, evidência de incredulidade, ganham dupla conotação ao longo dos cinco capítulos. Fugindo do tom laudatório, que transformasse seu protagonista em herói, “olha o que ele fez” pode ser lido também como espanto, até mesmo decepção, diante de atitudes que afetaram negativamente as trajetórias de outros profissionais. Talvez quem melhor traduza essa ambiguidade seja Renato Ribeiro, diretor de esportes do Grupo Globo: “genial e genioso”. Neste sentido, Gomes e Garambone por vezes retiram Galvão do “centro das atenções”, como ele se sente mais confortável – nos termos de Joana Timotheo, diretora de eventos esportivos da emissora –, para abrir espaço a outras vozes. Em forte depoimento, por exemplo, o ex-volante Alemão – acusado ao vivo de afrouxar a marcação em Maradona, seu companheiro de clube – afirma não atribuir “a mínima importância” ao arrependimento demonstrado pelo narrador, já que nunca foi procurado fora das câmeras.
Como o documentário deixa claro, afinal, Galvão é sobretudo uma figura midiática, orgulhosa, que “não pede desculpas” (também de acordo com Timotheo). Em cena de destaque, quando visita o ex-jogador Zinho, a artificialidade do encontro não deixa dúvidas: antes mesmo de a câmera entrar em sua casa, o convidado já veste uma lapela, sem esconder a teatralidade daquele pedido de perdão. Ainda assim, um instante de sinceridade emerge quando Zinho recorda o impacto dos comentários negativos em seu pai, morto dois anos antes das gravações. Outros antigos desafetos, como o ex-piloto Nelson Piquet – ressentido pela preferência por Ayrton Senna –, o jornalista Renato Maurício Prado – demitido do SporTV após discussão ao vivo –, o ex-treinador Felipão – decepcionado com o editorial da Globo após o 7 a 1 – e o jogador Neymar – alvo de muitas críticas –, foram convidados, mas não aceitaram participar.
Quando, de outro modo, Gomes e Garambone reconstituem a vida e a carreira do biografado, evitam individualizar méritos e conquistas. Em interpretação do jornalista Paulo Vinícius Coelho, Galvão Bueno era “o cara certo, na hora certa, no lugar certo”, que “se tornou a voz do Brasil” ao narrar três finais consecutivas da seleção em Copas do Mundo. A este elemento fortuito, mas nunca desprezível, soma-se um método de trabalho muito próprio, que seu antigo colega Walter Casagrande define como uma descarga de adrenalina. Para imprimir a emoção em sua voz, o próprio Galvão precisa estar agitado, o que levava o ex-comentarista de arbitragem Arnaldo Cezar Coelho a provocá-lo quando percebia a tranquilidade do amigo. A importância da equipe ao seu redor, por sinal, é reconhecida no último episódio, quando o documentário acompanha a transmissão da final da Copa do Mundo de 2022, cujos bastidores mostram o narrador pedindo e recebendo ajuda, como na confirmação dos autores dos gols.
Em termos de imagens, por fim, apesar de sua estrutura tradicional, o documentário esforça-se para expressar visualmente a itinerância do protagonista, acostumado a não ter residência fixa (aos 17 anos, já tinha morado em quatro cidades e com quatro famílias). Desde a primeira sequência, uma montagem de Galvão atravessando portas em diferentes cidades – Candiota (RS), onde mora hoje; Yokohama (Japão), onde testemunhou o pentacampeonato da seleção; Londrina (PR), onde vivia sua esposa; Doha (Catar), palco de sua última Copa –, somos convidados a percorrer cenários indissociáveis deste personagem que odiamos amar ou amamos odiar”.
Galvão: olha o que ele fez (2023, Globoplay)
Autores: Sidney Garambone e Flávio Orro
Direção e roteiro: Sidney Garambone e Gustavo Gomes
Direção artística: Rafael Carneiro
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Fôlego para o turismo
A triangulação entre entretenimento, cultura e esporte se expande sob a batuta do consumo. A Maratona do Rio contribui para a taxa de ocupação hoteleira superior a 80% no feriado de Corpus Christi.
Ao movimento em Ipanema, Leblon e Copacabana, tradicionais campeões turísticos, soma-se um volume expressivo de hospedagens em Botafogo e no Flamengo, bairros em torno dos quais se concentram as badalações do festival de corridas. Fora as provas, disputadas no Aterro e na Zona Sul, a Marina da Glória acolhe shows, bares, oficinas.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.