Esquinas do Esporte Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
Continua após publicidade

Pedra do Telégrafo: pegadinha num lugar além do horizonte

Passeio ao mirante da Zona Oeste oxigena o corpo, a cabeça, a vida, desde que corrida à foto-clichê não atropele a paz pintada de verde e azul

Por Alexandre_Carauta Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO
Atualizado em 26 abr 2021, 11h04 - Publicado em 20 abr 2021, 23h06
  • Seguir materia Seguindo materia
  • Mal o sábado desperta, pai e filho cortam a Grota Funda atrás do lugar além do horizonte cantado pelo octogenário Rei. Barraquinhas de banana, coco, caldo de cana dedilham a cadência bucólica. O recanto da Zona Oeste pulsa imune às horas. Exala a despretensão de uma mariola à beira da estrada.

    Publicidade

    O pai desfia as bênçãos do caminho: o Sítio Burle Max, a vegetação de restinga, as iguarias caseiras que deram fama às Tias dali. A granola matinal ainda se assenta, e ele já de olho no pastel de camarão com camarão de verdade.

    Publicidade

    O filho saliva por outro banquete. Devora a expectativa de subir à Pedra do Telégrafo, cume do Morro da Guaratiba. Os 40 minutos de carro até a trilha aguçam a ansiedade. Nada comparável ao teste de paciência que o mirante lhe reservava.

    A luz do outono imunda o corredor entre a Mata Atlântica e o tapete azul da Marambaia. Nenhuma estação faz o Rio tão bonito.

    Publicidade
    Continua após a publicidade

    A calma concede um rápido intervalo. Ao pé do morro, moradores negociam vagas improvisadas em garagens, ruas, becos. Preço fixo: 20 pratas. Quem madruga estaciona na cara do gol, a 100 metros da entrada. Qualquer economia de fôlego é bem-vinda.

    A trilha no Parque da Pedra Branca começa íngreme e segue assim na maior parte dos quase dois quilômetros. Não impõe dificuldade extra. Pai e filho levam meia hora. O rapaz esperava mais aventura. Nem por isso deixa de curtir o verde, a brisa, o cheiro de roça.

    Publicidade

    Fora a queima calórica, a caminhada é um respiro às crises de estimação – ética, humanitária, sanitária, socioeconômica. Um oxigênio à asfixia das tensões urbanas, do acúmulo de descasos, dos dias pálidos.

    Continua após a publicidade

    Passa das oito quando a dupla alcança o platô a 354 metros de altitude. Dele se avista duas praias selvagens – Perigosa e do Meio – ao lado de Grumari. A panorâmica enquadra, ao fundo, as orlas do Recreio e da Barra. Aquarela carioca.

    Publicidade

    Curiosamente o deslumbre não basta. É preciso alimentar o Insta. Moleza diante da fartura natural. Nem tanto. Poucos ousam voltar sem a imagem celebrizada nas redes: a pessoa se dependura numa ponta da rocha como se estivesse solta no ar. Ilusão obtida de um certo ângulo. Não à toa virou moda.

    james story pedra do telegrafo
    (Reprodução/Facebook)

    Instala-se uma corrida àquilo que a historiadora Ana Maria Maud chama de imagem-monumento: símbolo legado à posteridade. Como se a foto enganosa autenticasse a estada naquela maravilha do relevo carioca.

    Publicidade

    Logo cedo forma-se uma fila para o fake legitimado. A pegadinha se estende ao programa. Em vez de refúgio, parque temático.

    Muitos não se contentam com oito ou dez poses de recordação. Rendem-se à tentação do ensaio fotográfico. Monopolizam a superfície mineral por 15, 20, 30 minutos, como se decretassem “o Maraca é nosso”.

    Continua após a publicidade

    Um fotógrafo de plantão dá corda ao desejo comum. Três por R$ 15, acena a promoção do cartaz. Vários somam o reforço profissional à ciranda de cliques. Uma rave de expressões fabricadas.

    A fila empaca. “Já deu, pai”, inquieta-se sabiamente o rapaz. O cinquentão rebate: “Calma, estamos justamente fugindo da pressa. Olha a vista”.

    Entre um gole d’água e um polenguinho, a conversa fiada busca compensar a mofa. Apesar das máscaras e da distância razoável, a aglomeração espreita o pedaço de paraíso.

    Continua após a publicidade

    A espera ultrapassa uma hora. “Vamos nessa, pai. Quando a foto vira uma obrigação, não faz sentido”, ensina o jovem. Ouve do pai o pensamento dominante: “Viemos até aqui, não podemos desistir agora ”. A imagem-clichê sobe à cabeça.

    Enquanto o garoto tenta salvar o companheiro da hipnose coletiva, três amigas brindam o aniversário de uma delas num revezamento interminável de poses. Quando finalmente liberam o espaço, recebem um debochado aplauso da galera feita de boba.

    “Esperamos mais de meia hora. É a nossa vez”, defende-se a aniversariante. A paisagem divina não apaga, claro, a confusão entre direitos e privilégios. Tampouco aplaca a indiferença escancarada na guerra conta o vírus. De que vale o paraíso sem amor?, já dizia Roberto Carlos.

    Continua após a publicidade

    “Assim não dá. Não podem alugar a pedra”, aflige-se o guia próximo do ataque de nervos. Inconformado, arrisca uma fila alternativa para acomodar seu grupo na face menos concorrida da rocha. Falta pouco para alguém introduzir a venda de senhas e camarotes.

    Lá pelas onze da manhã pai e filho ganham a Pedra do Telégrafo. Tiram as fotos rapidinho. Querem reencontrar a paz pintada de verde. Àquela altura, o cheiro da mata, o compasso da roça e o pastel de camarão insinuam-se especialmente redentores.

    ___________________________

    Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.

    Publicidade
    Publicidade

    Essa é uma matéria fechada para assinantes.
    Se você já é assinante clique aqui para ter acesso a esse e outros conteúdos de jornalismo de qualidade.

    Domine o fato. Confie na fonte.
    10 grandes marcas em uma única assinatura digital
    Impressa + Digital no App
    Impressa + Digital
    Impressa + Digital no App

    Informação de qualidade e confiável, a apenas um clique.

    Assinando Veja você recebe mensalmente Veja Rio* e tem acesso ilimitado ao site e às edições digitais nos aplicativos de Veja, Veja SP, Veja Rio, Veja Saúde, Claudia, Superinteressante, Quatro Rodas, Você SA e Você RH.
    *Para assinantes da cidade de Rio de Janeiro

    a partir de R$ 39,90/mês

    PARABÉNS! Você já pode ler essa matéria grátis.
    Fechar

    Não vá embora sem ler essa matéria!
    Assista um anúncio e leia grátis
    CLIQUE AQUI.