Vizinho criado por treinador habita o indelével tempo além das telas
Símbolo das cornetadas de plantão, personagem inventado pelo técnico do Palmeiras representa também a força do laço primário, da prosa ao lado
Muito antes do WhatsApp havia a cadeira ao pé da porta. Na vila de Santo Cristo as cadeiras saíam ao anoitecer com a naturalidade das estrelas. Reluziam papos sobre o gol da rodada, o par romântico da novela, o namorado novo da prima, a arte da garotada. Refrescos à labuta diária, à dureza do bolso e da ditadura.
As cadeiras esparramadas em frente às casas pareciam bandeiras de São João. Coloriam de prosa aquela gota comunitária próxima ao porto carioca. Algumas eram viradas, para melhor descansar o torso, os braços, as falas. Outras testemunhavam duelos de dama ou xadrez, pretexto para conversar fiado.
Frestas temporais, as cadeiras formavam uma expressiva rede social. Não tinham o volume, tampouco o alcance das atuais. Mas conectavam histórias, vidas, sonhos. Repeliam filtros e polarizações. Uma exclusão soaria tão improvável quanto um silêncio no pique-bandeira ao fundo.
Hoje nos sentamos no cockpit das ferraris telemáticas. Se por acaso falta gasolina no posto comum, mal lembramos que podemos caminhar. Ou simplesmente parar, mergulhar no céu, no livro, na resenha de carne e osso.
A recente pane legou mais do que o alerta sobre a ancoragem de grande parte das mensagens e dos negócios planetários na mesma empresa. Por um lado, as mídias digitais diversificam e democratizam, até certo ponto, a comunicação. Por outro, concentram-se em pouquíssimas mãos. O império do Facebook é o emblema mais contundente desta dualidade assinalada por pesquisadores como o filósofo Douglas Kellner e o antropólogo Néstor Canclini.
O colapso de segunda passada escancarou a colonização digital instalada mundo afora. Mas lembrou que ainda podemos nos comunicar por telefone e outros meios off-line. As seis horas sem Face, WhatsApp, Instagram reavivaram laços primários.
Embora tenham exponenciado a aldeia global preconizada por Marshall McLuhan nos anos 1960, as transformações digitais não desalojaram a prosa de cadeira. Nela gravita a eternidade do vizinho. De porta, mesa de bar, arquibancada.
Sua influência sobre relações, tramas e tensões cotidianas se reflete numa infinidade de personagens tão caricatos quanto marcantes: a vizinha patusca de Nelson Rodrigues; o invasivo Kramer, de Seinfeld; o pegajoso Flanders, dos Simpsons; a briguenta Lili, eternizada por Consuelo Leandro em Cambalacho; o sarcástico Melvin Udall, de “Melhor é impossível”, que rendeu a Jack Nicholson o Oscar de melhor ator em 1998; e, claro, a Marilyn da saia esvoaçante que revira as férias pacatas do vizinho Richard (Tom Ewell) em “O pecado mora ao lado”.
Aporta nesse almanaque o tipo criado pelo técnico do Palmeiras para personificar as críticas recebidas. Uma espécie de Judas ao qual Abel Ferreira endereçou, dedo em riste, o malho depois da classificação à final da Libertadores. Na coletiva pós-jogo, ele “esclareceu”:
“Tenho um vizinho no meu prédio que é um chato. [O recado] foi diretamente para o meu vizinho, para ele ficar calado. Porque quem manda em minha casa, o que se passa em minha casa, sou eu que sei, não é ele. Quem trabalha dentro do CT sou (sic) eu e meus jogadores”.
Faltou dizer que o tal condômino constituía uma representação ficcional dos corneteiros de plantão. Fora inventado para Abel espinafrar os bedelhos de torcedores e jornalistas no seu trabalho. O treinador havia extraído do imaginário um contragolpe inusitado às supostas intromissões.
“Quem não tem um vizinho desses? Se não tem, meu amigo, desconfie de que você é o vizinho”, brincou o apresentador do SporTV Magno Navarro. Na mosca.
A identificação automática indica o tamanho da nossa inserção nessa mitologia além da colher de açúcar, do pecado ao lado, da fofoca e demais clichês explorados pelas comédias de costumes. Somos todos os vizinhos. Mais que isso, somos todos vizinhos.
Em meio à fugacidade contemporânea, em meio ao cancelamento à espreita, ao individualismo engordado no pasto das exposições fabricadas, há de prevalecer o estar-junto. Havemos de (re)valorizar o laço primário, a pausa pra contar e ouvir, congregar vivências e afetos. Reencontrar a leveza. A leveza dos papos de cadeira.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.