Skate de rua movimenta microrrevoluções urbanas
Ao pesquisar a cultura do esporte desde 2016, Cláudia Pereira, da PUC-Rio, identifica consolidação de um estilo de vida propulsor de transformações sociais
O skate acelera nas veias do Rio. Milhares de cariocas sonham em desafiar as leis da física como Rayssa Leal, Pedro Barros, Pâmela Rosa e outros bambas reunidos no STU Open. Jovens do morro e do asfalto aspiram um dia disputar um torneio internacional desses, virar estrela das pistas e das redes. Ou simplesmente melhorar a vida com a ajuda de um esporte que, outrora marginalizado, arrebata milhões de praticantes e consumidores planeta afora. Movimenta quase R$ 1,5 bilhão por ano só no Brasil, calcula a Confederação. Mais do que isso, impulsiona microrrevoluções urbanas.
A guinada é cartografada desde 2016 por investigadoras e investigadores do Laboratório de Culturas Midiáticas das Juventudes (LabJuX), da PUC-Rio (@labjux, no Instragam). Eles identificam novas relações materiais e simbólicas do skate com a sociedade, o mercado, a cidade. “O skateboarding passou a ser uma representação incontestável de valores positivos da juventude, explorada pela narrativa publicitária”, observa a fundadora e gestora do LabJuX, Cláudia Pereira, também coordenadora da graduação em Estudos de Mídia.
Organizadora do livro “Skate 360°: rolés teóricos pelas ruas da cidade“, Cláudia percebe ainda uma ligação crescente da atividade com o ativismo social e a convivência familiar. A pesquisadora explica, na entrevista abaixo, como essas mudanças culturais reconfiguram as janelas do skate no mundo contemporâneo.
O skate se tornou, sobretudo depois da inclusão olímpica, um esporte prestigiado, até cultuado. Esta guinada é comparável à do surfe, outrora também marginalizado, hoje associado a saúde, sucesso e mobilidade socioeconômica?
O skate tem suas origens no surfe. Já foi, nos primórdios, chamado de “surfinho”. As trajetórias se assemelham, sob o prisma da inclusão olímpica, especialmente nas formas como as mídias os representam hoje: como esporte, disciplina e celeiro de talentos de diferentes classes sociais. Essa imagem positiva vem transformando o senso comum a respeito das duas práticas, principalmente pelos ídolos que surgem delas, como Rayssa Leal e Gabriel Medina. Observamos uma maior complexidade no caso do skate, pois mexe com uma cultura com particularidades não encontradas no surfe.
Como assim?
Skatistas de rua discutem aspectos do processo de esportivização, ligados também pelo discurso jornalístico especializado, que podem desviar valores de solidariedade e de fair play tão caros ao cotidiano deles e à forma como estabelecem seus laços sociais. Um bom exemplo foi a reação negativa à cobrança pelo ingresso no STU Open Rio de 2022, já que campeonatos genuínos organizados pelos skatistas de rua são festas bem democráticas, com muitas atrações artísticas, abertas à população local, com tudo de graça.
Que outras mudanças significativas são identificadas na relação entre o skate e o mundo contemporâneo?
O skate é múltiplo. Há muitas modalidades e jeitos diferentes de praticar. O skate de rua é o que mais conhecemos, pois está em todos os lugares. E é também sobre ele que nossas pesquisas mais se debruçam, pela riqueza de questões sobre a contemporaneidade.
Por exemplo?
Uma delas é a conexão com as mudanças na ocupação das cidades e na configuração urbana. Os skatistas de rua são nômades. Circulam por diferentes picos da cidade, sem fronteiras geográficas ou sociais. Aqueles que podem circulam também por cidades, estados e países, seja por meio de campeonatos, seja por turismo. Porque a graça está em experimentar a urbanidade de diferentes lugares e culturas. A reboque desse trânsito, vem o registro audiovisual: imagens do dia a dia das diversas culturas circulam pelas redes sociais e por outros espaços midiáticos, inclusive televisivo, que exploram a junção esporte-adrenalina-turismo. O skatista de rua transita por cidades, transgride geografias, transforma os lugares. Movimenta praças, ruas e construções até então sem vida, sem fluxo, sem gente.
Por falar em mídia, suas pesquisas apontam que a publicidade recorre ao skate para representar valores positivos da juventude…
Exatamente. Nossas pesquisas sobre as representações do skate de rua na publicidade surgem da minha observação de que ele estava aparecendo com frequência em mensagens publicitárias para vender marcas, produtos e serviços que nada tinham a ver com skatistas. A ideia de juventude agrega às marcas valores positivos, como alegria, vitalidade, aventura, rebeldia, saúde, beleza, modernidade, inovação, variando de acordo com a ideia que se quer adquirir por meio da imagem das culturas juvenis. O skate de rua é ótimo nesse sentido.
Por quê?
Porque é fácil de ser reconhecido, graças ao próprio objeto que o caracteriza: a prancha com rodinhas. Essa materialidade explicita valores ligados à modernidade, à ousadia, à rebeldia, à mobilidade, à vitalidade. São muitas as possibilidades de associação com a ideia de juventude como estilo de vida. Visualmente, o skate de rua grita a sua juventude. Na maioria das vezes, isso desagrada o skatista de verdade, pois, em geral, quem produz essas imagens não é praticante e não conhece a cultura, dando margem a equívocos que não são reconhecidos pelo público comum. Isso intensifica a resistência dos skatistas de rua ao patrocínio de determinadas marcas que, para eles, não traz nada de positivo à preservação dos valores de sua cultura.
A própria entrada nos Jogos Olímpicos, que ampliou a projeção global do esporte, foi criticada por alguns praticantes. Qual a influência da inclusão olímpica e do sucesso esportivo e midiático de estrelas como Rayssa Leal nas transformação sociocultural do skate?
A despeito da insatisfação de alguns skatistas de rua com a entrada olímpica, o que está nas declarações sinceronas do medalhista Pedro Barros nos Jogos de Tóquio, o espaço crescente do skate nas mídias leva para dentro das famílias algo que era da rua, de vândalos, de maconheiros, de vagabundos. Roberto DaMatta já nos ensinou as dicotomias entre a casa e a rua. Inspirada nele, posso dizer que o skate deixa de ser da rua e passa a habitar a casa. É aceito por pais e mães, que consideram matricular os filhos em escolinhas. Além disso, o Brasil dos últimos anos está sedento por um herói. Melhor do que a encomenda, surge então uma heroína, muito jovem, muito fofa, nordestina, ainda por cima com a magia de uma fadinha. Rayssa Leal passa a ocupar o lugar da princesa a ser imitada. Isso é também ótimo para a inserção das mulheres no ambiente masculinizado do skate.
Suas investigações identificam também uma ligação do skate com o ativismo social…
Historicamente, a prática do skate sempre foi outsider. Não era permitida pela polícia ou bem aceita pelas famílias. Desse modo, o aspecto de resistência da cultura do skate de rua, e a promoção interna de valores democráticos e igualitários – ainda que restrito aos homens, o que vem mudando por iniciativa de vários coletivos espalhados no mundo –, toda essa trajetória do skate como subcultura favoreceu a entrada de pessoas de diferentes classes sociais convivendo em harmonia. Isso inspirou um espírito de solidariedade muito sólido, que se concretiza, hoje, em projetos sociais liderados inicialmente por skatistas que estão nas ruas há 30, 40 anos. O skate envelhece, como todas as subculturas envelhecem, e o maior legado que o pessoal mais antigo deixa é a solidariedade praticada em projetos sociais.
Esses projetos avançam no Rio, não?
Há importantes ativistas, também skatistas, todos jovens, que vêm transformando a vida de muitas famílias. Ademar Luquinhas, morador de Santo Amaro, favela do bairro do Catete, mantém o Instituto Ademafia de Cultura e Esporte. Neste espaço, cerca de 70 crianças fazem aulas de skate duas vezes por semana, ganham merenda e ainda aprendem outras atividades, como circo e barbeiro, com o apoio de voluntários de vários bairros da cidade. Na Cidade de Deus, o skatista Denis Resende está à frente da ONG CDD Skate Arte, envolvendo crianças e adolescentes também em aulas de skate e em atividades ligadas a grafite e música. Mas há muitos outros, no Complexo do Alemão, em Campo Grande, na Rocinha. Tem muita gente transformando vidas por meio do skate no Rio e pelo Brasil afora.
Quais as principais descobertas do LabJuX sobre a dimensão sociocultural do skate? Ele se consolida como estilo de vida?
O skate de rua é um estilo de vida. Esta é uma discussão clássica entre skatistas de rua: esporte ou estilo de vida? A maioria defende que é estilo de vida, pois o esporte pressupõe a submissão à disciplinarização e à lógica mercantil capitalista, coisas que não combinam com a filosofia igualitária e democrática, não competitiva, da cultura do skate de rua. A dimensão sociocultural do skate de rua, portanto, é importante no mundo contemporâneo por reforçar o que nos falta: o discurso da paz, da solidariedade, do companheirismo e da fidelidade a uma filosofia de vida que se coloca em lugar de resistência por meio da transformação, de microrrevoluções, de mudanças feitas nos entornos dos bairros, com a ajuda de voluntariado e de comerciantes locais. O skate de rua é estilo de vida, mas também é política. Uma política apartidária e que resgata o lado mais nobre da palavra.
Até por esse caráter inclusivo, a prática e o consumo de skate crescem em vários pontos do Rio, que tem recebido competições importantes como o STU Open. Como o skate pulsa na cidade?
Tomando o skate como esporte, vemos uma expansão de seus domínios, com maior presença nas ruas, nas praças, nos condomínios, nas escolas, no dia a dia de um modo geral. Mas vemos também alguns empreendimentos oportunistas, como lanchonetes e restaurantes com a temática do skate. Também observamos espaços inusitados genuínos, como bares com bowls para a prática do skate indoor. Aliás, o skate indoor não é uma novidade, mas agora ele passa a ser uma boa oportunidade de investimento, aproveitando a onda do skate olímpico.
De que forma a vocação esportiva do Rio pode influenciar os rumos sociais, culturais e econômicos do skate?
O Rio é considerado super skatável pelos praticantes. A cidade já é, há algum tempo, uma das melhores plazzas, ao lado de Barcelona, para a prática do skate de rua. Virou destino de skatistas do mundo inteiro muito antes da Olimpíada do Japão (2021). Praça XV, Porto Maravilha e Parque Madureira são só alguns exemplos de lugares em que o skate pulsa em sua forma mais original. Além disso, o Rio também é uma cidade cercada de favelas, o que favorece a emergência de ativistas promovendo a transformação social por meio da cultura do skate.
Você arrisca algumas manobras nessa cidade tão convidativa ao skate? Pratica ou já praticou o esporte?
Não sei andar nem de bicicleta! Prefiro ficar só observando mesmo… Uma de minhas três filhas anda de skate, mas sem se arriscar muito, e circula bem em eventos que envolvem amigos skatistas, o que me ajuda muito nas pesquisas também.
Por que decidiu pesquisar esse esporte? Quais os próximos passos?
Sempre gostei muito de assistir às competições de skate, pela televisão. Eu me encantei com a mistura de idades, com a cumplicidade, com os afetos entre eles, com a falta de necessidade competitiva. O interesse pela pesquisa com skatistas veio daí. Em novembro, vamos lançar o portal LabJuX (Laboratório de Culturas Midiáticas das Juventudes), com conteúdos sobre o universo do skate e de seus projetos sociais. Serve tanto para pesquisadores, como eu, quanto para skatistas e curiosos. Os conteúdos são produzidos por alunas e alunos dos cursos de Comunicação da PUC-Rio, sob a minha orientação e de pesquisadores parceiros que se engajaram nesse projeto de extensão. Estamos também programando uma nova volta ao campo [de investigação], o que foi interrompido pela pandemia, para saber como os skatistas de rua receberam a repercussão dos Jogos do Japão.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.