Prioridades no país dos famintos e dos sedentários
Depois de tornarem Lewis Hamilton cidadão brasileiro, deputados têm a chance de consolidar plano de democratização da prática esportiva
Os números sangram desespero. Chegamos a 125 milhões sem a certeza de uma refeição sequer por dia. Pior: 35 milhões condenados à barriga vazia.
Os famintos cresceram 70% em um ano. A exportação de alimentos segue entre as líderes globais. Nosso mais indigesto contraste.
O levantamento da Rede Brasileira de Pesquisa em Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) escancara o mergulho na desumanidade. Acentuado com a pandemia, o estio de comida transborda urgência. Não há pressa maior, lembrava Betinho.
Nada seria tão prioritário ao poder público quanto aplacar a agonia de milhões das famílias sem alimento (ou alimento decente), portanto sem saúde, sem dignidade. Mais do que dever constitucional, constitui uma responsabilidade conjunta para resguardar, a todos, o mais elementar dos direitos humanos. O direito à vida.
O desafio de erradicar a fome deveria guiar soberanamente as políticas governamentais. Envolve competências e esforços superiores às recalibragens de programas assistenciais.
Da reforma tributária até a orquestração do agronegócio, os arranjos executivos e legislativos teriam de articular-se, em alguma medida, à premência de dirimir a insegurança alimentar. Casamento dificultado por flertes com o populismo, conveniências político-eleitorais ou desconexões da realidade.
Propostas de erradicação da fome haveriam de receber prestígio semelhante ao do projeto que torna cidadão honorário o britânico Lewis Hamilton, fã de Senna e outras maravilhas verde-amarelas. Os deputados entenderam que a sugestão do colega André Figueiredo (PDT-CE) merecia ser votada com urgência.
A homenagem ajudaria um “processo de reconciliação nacional e de retomada de nossos símbolos nacionais como patrimônio de todos os brasileiros”, justificara Figueiredo. Seus pares concordaram. O título será entregue ao piloto em sessão solene.
O heptacampeão mundial agradeceu, nas redes, a deferência vinda de um dos seus “lugares preferidos”. Talvez ele vista a bandeira do Brasil em novas vitórias, como fez ao conquistar Interlagos ano passado.
Outras homenagens de natureza esportiva aguardam na fila. O deputado Daniel Trzerciak sugere, por exemplo, decretar o município de Rio Grande (RS) “capital mais longeva do futebol brasileiro”. Já Otávio Leite propõe transformar a histórica Charanga do Flamengo em patrimônio cultural.
Sugestões inclusivas também aguardam a vez nas comissões parlamentares. Por exemplo, a criação do Programa Funcional para crianças e adolescentes especiais; a ampliação da educação física adaptada às modalidades paralímpicas; e a prorrogação até 2027 da Lei de Incentivo ao Esporte (LIE – 11.430).
Aprovada entre os deputados, a renovação do estímulo fiscal aporta na Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado com boa chance de ser encaminhada à caneta presidencial. Inclui o aumento no limite dedutível do Importo de Renda destinado a programas esportivos: 7% para pessoas físicas, 2% para empresas.
Quase a metade dos 2.500 projetos apresentados, em 2021, com base na LIE tem caráter educacional. Seriam mais, se a lei expandisse o alinhamento à responsabilidade estatal de potencializar o esporte como instrumento de inclusão, educação, cidadania.
O compromisso é destacado no Plano Nacional do Desporto (PND). À espera da votação no plenário da Câmara, reúne seis diretrizes para democratizar a prática esportiva e efetivá-la como “direito social”, enfatiza o relator Afonso Hamm (PP-RS).
Já teríamos um avanço tremendo se fossem cumpridas as duas primeiras diretrizes do texto original:
- Garantir acesso à prática e à cultura da educação física e do esporte nas escolas de educação básica, de forma a promover o desenvolvimento integral de crianças, adolescentes e jovens e favorecer a inclusão social.
- Incentivar a prática da atividade física e do esporte, de forma a promover hábitos saudáveis que contribuam para a saúde e para a qualidade de vida dos jovens, dos adultos e dos idosos.
O Brasil dos famintos também é o Brasil dos sedentários e dos obesos. Menos de um quarto da população exercita-se com frequência, estima o IBGE. Seis em cada dez brasileiros estão acima do peso ideal. Reflexo do crescimento no consumo de alimentos ultraprocessados, mais baratos, carregados de açúcar e gordura, pouco nutritivos.
Desnutrição, obesidade e falta de atividade física regular – somadas à privação de água tratada da qual padecem 35 milhões de cidadãos – devastam a saúde, o futuro. Germinam uma epidemia de doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, câncer. Bombas-relógio muitas vezes silenciosas.
O reconhecimento da urgência em integrar soluções para esses flagelos diz o que somos e o que queremos ser. A cartografia das prioridades coletivas configura-se um farol decisivo, especialmente à luz das urnas.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.