Para banir o machismo, futebol precisa vencer a complacência
Divórcio de padrões masculinos permeáveis à violência exige que condescendência crônica e cumplicidade corporativista se rendam à consciência humanitária
A condenação de Daniel Alves por estupro emana uma profunda densidade simbólica. Representa uma resposta tanto às violências contra a mulher, relativizadas pelo machismo estrutural, quanto à tradição do futebol em legitimá-las.
Fora as indignações retóricas, fora as reações isoladas e superficiais, como retirá-lo da lista oficial de ídolos do Barcelona, a indústria esportiva manteve-se inerte. Emblematicamente inerte.
O silêncio ultrapassa a cumplicidade corporativista. Expressa o elo do universo futebolístico com padrões masculinos hegemônicos, historicamente carregados de discriminação e brutalidade.
O mundo da bola ajuda a fixá-los. Uma alfabetização perpetuada despretensiosamente nos campinhos e nas relações entre boleiros. Assim comprovam pesquisadores como Arley Damo e Adriana Braga.
Futebol é para homem, adverte logo o pai ou ou o irmão mais velho. Mal o guri rala o joelho na terra ou recebe um safanão desleal, reforça-se a lição. Desde cedo a peladinha da esquina o ensina a engolir a dor. Sem perceber, engole o coração inteiro.
Ritos futebolísticos doutrinam: homem não chora, não cai, não deixa de revidar, nem de se impor à força. O manual da masculinidade protocolar costuma prevalecer sobre os valores olímpicos da empatia, da equidade, da inclusão.
Brincando, brincando, o moleque aprende a jogar e a virar homem. Enquadra-se na identidade sociocultural masculina, nos seus clichês materiais e imateriais, nos significados e códigos calejados em reprimir gentilezas.
Muitas vezes convergem, com vergonhosa banalidade, para o desrespeito, a opressão física e verbal. Desembocam em indecências como os abusos sexuais sistematicamente perpetrados contra mulheres e meninas: um a cada oito minutos, contabiliza o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Romper o entrelace do futebol com tal partitura revela-se tão difícil quanto necessário. Requer o investimento em educação e o amadurecimento humanitário inerentes às transformações ou revoluções atrás da harmonia coletiva. Nunca é fácil, nem rápido.
O desafio impõe um engajamento plural. Exige uma adesão ampla dos profissionais da área, especialmente os de maior projeção, peso político, influência social.
Corporativismo e complacência hão de se render à consciência cívica, à cidadania. Começa por reconhecer a urgência em fazê-lo.
Todo artista deve viver de olhos abertos, pregava o pintor argentino Antonio Berni (1905-1981). A recomendação estende-se, é claro, aos artistas da pelota.
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Desafios da cobertura esportiva
Por falar em engajamento, o ABI Esporte estreia a segunda temporada nesta segunda, às 19h30, no canal da Associação Brasileira de Imprensa no YouTube. Comandado pelo presidente do Conselho Deliberativo da ABI, Marcos Gomes, o programa semanal discute os rumos, dilemas, aperfeiçoamentos da cobertura esportiva.
Os debates abordam temas como a contribuição jornalística para reduzir o racismo e outros preconceitos manifestados nos ambientes esportivos. Com produção de Silvia Serra e participação de Jamile Barreto e Paulinho Sacramento, o ABI Esporte reúne também informações sobre qualificação e oportunidades profissionais.
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Maré solidária
A tabela entre esporte e responsabilidade social navega em várias frentes. O Rainha do Mar deste ano, por exemplo, já encaminhou 518 unidades de leite em pó ao Pro Criança Cardíaca.
A doação integra as campanhas solidárias promovidas nos eventos da Effect Sport, como o festival aquático. Em 2023, 1.500 unidades de leite foram repassadas à organização sem fins lucrativos.
Criado em 1996 e instalado em Botafogo, o Pro Criança Cardíaca presta serviços pediátricos gratuitos integrados a ações sociais. Acumula 15 mil atendimentos a crianças e adolescentes pobres.
Ana Marcela Cunha, ouro na maratona aquática dos Jogos de Tóquio, faturou o Rainha do Mar 2024. A disputa reuniu mais de mil competidoras, dia 25 de fevereiro, na praia de Copacabana.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.