Os mares de Maya, Beatriz e Cecília
Mais do que histórias de superação, recordista mundial e surfista da Rocinha têm em comum a eternidade lúdica do "mar absoluto" de Cecília Meireles
Uma esboçava no Arpoador o salto à posteridade. Perto e longe dali, a outra mal acabava de nascer. Nos 14 anos seguintes as duas cariocas afogariam preconceitos, estatísticas, convenções. Maya Gabeira trocaria o Arpoador pelo Havaí, tomaria gosto pelas montanhas aquáticas, acumularia troféus. Venceria lesões, medos e dois baitas sustos. Faria história. Primeira mulher a surfar no Alasca e a cravar um par de recordes de ondas gigantes no Guiness – o segundo oficializado quinta-feira passada. Beatriz Barroso de Farias trocaria os nãos que o destino lhe reservava pela ambição de viver do mar. Nele mergulha diariamente, do alto da Rocinha. Beatriz também é campeã.
A jovem de 19 anos contava as horas para começar a faculdade de biologia quando Maya impôs-se à onda 13 vezes superior ao seu 1,68 de altura. Aquele 11 de fevereiro seria inesquecível. Ao descer pela parede de 22,4 metros, equivalente a um prédio de sete andares, Maya produziria mais do que a quebra em dois centímetros do próprio recorde. Inspiraria construções do impossível. “Ela prova que nós mulheres podemos ir longe. É a minha inspiração”, derrama-se Beatriz.
A futura bióloga marinha acalenta na família inspiração igualmente decisiva. Não vem das manobras no oceano. Vem da caneta da bisavó Luiza. A senhorinha sabe quase nada de esporte. Tampouco sabe escrever. Mas é dela a assinatura na inscrição para a escola de surfe, em 2015. Havia dois anos que Bia tentava obtê-la dos pais: “Eles não davam bola. Sem a minha bisavó, não teria virado surfista”.
Luiza deu a moral que faltava para a bisneta somar-se às sete milhões de surfistas do planeta. Em meio aos afazeres de estudante e aos trabalhos do sustento doméstico, Beatriz passaria a frequentar nos fins de semana a escolinha tocada desde 1994 por José Ricardo Ramos, o Bocão da Rocinha. Dele viraria um braço direito.
A adolescente levou dois anos até ficar em pé na prancha. “Eu sentia medo”, justifica, com sábia naturalidade. “Amo as ondas, mas tinha medo”. Saber ouvi-lo revela-se tão importante quanto superá-lo. Assim guiou-se tantas vezes o campeão mundial de ondas grandes Carlos Burle: “O medo faz parte do esporte, da vida. Sem isso, a gente não consegue nem atravessar a rua com segurança”, comentou o big rider, num papo online com estudantes da PUC-Rio, em junho.
Maya também encara sistematicamente o medo. Inevitável não ser despertado por estrondos como o do everest d’água que lhe renderia o novo recorde. A familiaridade com Nazaré, capital das ondas gigantes, onde mora parte do ano, não a imuniza do frio na espinha. Mais que uma rotina, um constante aprendizado.
Beatriz exorciza seus medos noutra borda do Atlântico. Mesmo a 7.800 quilômetros de distância, projeta-se nos tobogãs bravios de Nazaré. Irriga o sonho na praia de São Conrado. Meia hora de caminhada a separa desse quintal transbordado de reciprocidade. Lá Bia aplaca a sede de integrar-se à vida marinha, e retribui a dádiva com um apoio abnegado às novas calouras, aos novos calouros. “Virou professora”, orgulha-se Bocão. “E ainda conserta pranchas”, acrescenta o empreendedor.
A maré do coronavírus arrastou Bocão e Beatriz para uma parceria não menos pródiga. No lugar das aulas, distribuição de cestas básicas na comunidade. Navegar era preciso.
Bia, Maya, Burle, Bocão fazem do surfe também uma filosofia de vida. Envolve, entre outras virtudes, a paciência. “Essa lição me acompanhou na quarentena. A paciência cultivada no surfe me ajudou a controlar a ansiedade. O mar me fazia muita falta”, relata Beatriz.
Há duas semanas ela reencontrou o quintal exilado na retina durante os cinco meses de confinamento. Nem o sonhado sucesso no Havaí ou em Nazaré suplantaria o sorriso de retomar a caminhada entre a casa no cume da Rocinha e a praia de São Conrado.
Felicidade igual, só nas visitas à bisavó. Há quatro anos Luiza está radicada casualmente em Saquarema, na Região dos Lagos, a 80 quilômetros da capital fluminense. O município abriga a icônica Itaúna, praia alçada ao imaginário do surfe pelos torneios lá disputados nos anos 1970 e 1980. “Ainda não surfei em Itaúna. Mas é questão de tempo. Por ora, vou lá rever a minha bisavó”, alegra-se.
Enquanto sonha com Itaúna e Nazaré, a jovem criada pela bisavó tece pretensões singelas: começar a competir, ensinar as novas gerações, estimular a entrada de mais mulheres num universo 80% masculino. “Quando comecei, era a única da turma. Agora percebo mais garotas aprendendo a surfar. Elas veem casos como da Maya e se sentem mais motivadas, mais seguras. Eu mesmo já sirvo de exemplo para algumas meninas da Rocinha. Isso me deixa muito orgulhosa, e aumenta a minha responsabilidade”, emociona-se Bia.
Quando sobrar um tempo, ela vai pintar a prancha com “cores dos elementos marinhos”. Já as tem na alma. Nada lhe resplandece mais do que se misturar à água salgada. A delícia de ser simultaneamente “o dançarino e a sua banca”, como o “mar absoluto” de Cecília Meireles.
Essa simbiose profunda, quase celular, dilui as fronteiras entre Beatriz e Maya. Estão juntas. Não só porque nasceram na mesma cidade, amam o surfe, venceram discriminações, medos, prognósticos. Não só porque superaram as barras com perseverança, talento, empatia. Não só porque domam o mar, e o respeitam. Mas porque, acima de tudo, acima de pódios e circunstâncias, elas são o mar. São seus encantos, seus desafios, suas danças, suas multidões. São os muitos mares contidos no mar.
Beatriz e Maya encontram-se na eternidade lúdica do mar de Cecília:
“(…) matando-se e recuperando-se,
correndo como um touro azul por sua
própria sombra, e arremetendo com bravura contra
ninguém,
e sendo depois a pura sombra de si mesmo,
por si mesmo vencido. É o seu grande
exercício.
Não precisa do destino fixo da terra,
ele que, ao mesmo tempo,
é o dançarino e a sua dança.
Tem um reino de metamorfose, para
experiência:
seu corpo é o seu próprio jogo,
e sua eternidade lúdica
não apenas gratuita: mas perfeita.”*
* Trecho do poema “Mar absoluto”, publicado por Cecília Meireles em 1945.
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Alexandre Carauta é jornalista e professor, doutor em Comunicação, mestre em Gestão, também formado em Educação Física.