Hora de engrenar o prioritário no esporte para tentar conter a pandemia
Lideranças como as da Democracia Corinthiana ajudariam indústria esportiva a se ajustar à urgência do controle do avanço do vírus
Herbert não partilhava a flama esportiva do irmão Henfil, louco pelo Flamengo (paixão imortalizada nas tirinhas do livro “Urubu”, de 2007). Mas Betinho batia um bolão. Tem lugar cativo no almanaque dos craques em cidadania e direitos humanos. Devemos ao sociólogo, levado pela Aids em 1997, o cirúrgico apelo, quase uma súplica, cuja sistemática lembrança é dever de todos: “Quem tem fome tem pressa”. Aplica-se, como nunca, aos tristes dias de hoje. Dias intermináveis.
Mais de 10 milhões de brasileiros convivem com a falta de comida. Padecem de insegurança alimentar grave, informa o IBGE. De água tratada, carecem 35 milhões. Grande parte da população também segue distante da atividade física regular e orientada.
Às crônicas precariedades, barreiras para a vida saudável, somam-se as carestias da desgraça sanitária. Tempestade perfeita. Desaba sobre a saúde pública às voltas com uma coleção de fomes.
Fome de leito, vacina, oxigênio. Fome de amparo médico e socioeconômico. Fome de lucidez. Mais de 600 famintos aguardam o socorro intensivo no Rio. Equilibram-se entre os sopapos da Covid e a ânsia pelo tratamento sem o qual beijarão a lona.
A procura avança numa velocidade invejável ao dólar, bem acima à do reforço de vagas e profissionais nas UTIs. Qualquer criança familiarizada com a matemática básica e os fatos diante dos olhos teria percebido que, no andar da carruagem, a conta não fecha.
A pressa dos milhares de brasileiros na fila atola em inapetências e negligências fatais. Muitos sucumbirão ao surto de insuficiência empática. A carapuça veste uma parcela da indústria esportiva.
Enquanto a vacinação caminha descompassada da urgência em frear o massacre, a fresta de luz é o recuo da circulação. Um remédio tão complexo quanto impreterível, cujas doses precisam considerar particularidades comunitárias, culturais, econômicas.
Dificultadas por desatinos político-administrativos, essas calibragens convergem para a aplicação extensiva e imediata prescrita pelas autoridades científicas. Subestimá-la ou ludibriá-la equivale a dispensar o bombeiro no auge do incêndio. Nenhuma outra pressa deveria sobrepor-se à de amansar as labaredas inflamadas pelo descaso.
A migração do futebol carioca e paulista para praças vizinhas manifesta outra pressa. Em nome de uma resistência financeira, corre contra a paralisação destinada a conter o arranque de contágios e mortes. Uma bala de prata cujo sucesso depende da adesão de todas as instâncias sociais, políticas e econômicas.
O cumprimento de contratos, vital a qualquer negócio, não se impõe à necessidade conjunta de estancar o tsunami que ultrapassa as 300 mil vítimas. Nada configura-se mais imperioso.
O Brasil encara seu Dia D. A hora crucial de desacelerar a propagação do vírus e interromper o crescimento de pessoas fadadas a sequer receber uma fração das terapias necessárias à sobrevivência. O despertar decisivo lateja em nossas mãos. Não exclui o mercado esportivo.
O andamento itinerante dos campeonatos é justificado como uma vacina às perdas econômicas na casa dos 11 milhões de postos de trabalho fechados desde o início da crise. Justificativa enganosa. Abstraídas as legítimas intenções, domar o vírus é o único caminho para a retomada da economia.
O ministro Paulo Guedes tardou mas admitiu publicamente a óbvia cumplicidade entre o controle pandêmico e a recuperação econômica. Aproximar o discurso da prática é responsabilidade também dos gestores e investidores esportivos.
A dura tarefa inclui revisão de metas, acordos, orçamentos. Revisão de prioridades. Envolve auxílios para suportar amputações de jogos, públicos, receitas, e outras emergências de guerra – especialmente cruéis com a maioria mais vulnerável dos 800 clubes do nosso futebol profissional.
O cenário exige mais do que a ajuda de R$ 36 milhões desembolsada pela CBF no ano passado, uma fatia dela sob a forma de isenções e antecipações financeiras. São necessários esforços distintos da transferência de partidas para Saquarema e Volta Redonda, como se a jogada imunizasse o setor do colapso em curso nos quatro cantos do país.
“Fica difícil saber o que é certo e o que é errado”, desabafou o goleiro Cássio, do Corinthians, ao deixar o campo do Raulino de Oliveira, em Volta Redonda, na terça-feira passada. Nem a vitória sobre o Mirassol maquiava o incômodo com o indefensável embarque na realidade paralela.
Nessas horas fazem muita falta mentes e vozes como as reunidas na Democracia Corinthiana de Sócrates, Casagrande, Wladimir. Encorparam a luta pela restituição democrática no início dos anos 80, e a estenderam ao combate a tutelas no mundo da bola.
Lideranças assim ajudariam a evocar as prioridades gritantes, invariavelmente humanitárias, e a construir consensos para consumá-las. Elas têm a pressa da fome.
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Até as casuarinas sabem
O templo do surfe já tinha virado casa do vôlei. Agora ataca de capital temporária do futebol. A 120 quilômetros do Rio e 430 de São Paulo, Saquarema concentra cinco jogos em seis dias – quatro do Carioca, um da Copa do Brasil (Corinthians x Retrô). Maratona superior, só na UTI: as vagas também esgotaram por lá.
Sob a espuma de estratégia operacional, a pedalada logística transfigura duplamente o mérito esportivo. Tanto em relação a valores historicamente associados ao esporte moderno, como integração e solidariedade, quanto à prática em alto nível. A grama do estádio de Bacaxá anda nada favorável à pelota. Até as casuarinas de Saquarema sabem disso.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.