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Esquinas do Esporte

Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio Materia seguir SEGUIR Seguindo Materia SEGUINDO
Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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Lembranças afetivas de cariocas que levantam a bola da memória

Craques em reavivar o passado, como a cineasta Cecília Lang e o colecionador Luís Quedinho, recordam histórias que rimam o universo esportivo e o Rio

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17 out 2024, 16h46
Rodas de altinha na praia de Ipanema
Premiado no Cine Esporte, o documentário "Bola pro alto" radiografa a cultura praiana pela lenta da altinha (Marcos Prado/Reprodução)
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A voz delicada de Zeinab exala o avesso da estridência bélica. Sob a gritaria das bombas, a fuga de Beirute ecoa prioridades. Em meio a escombros materiais e imateriais, a jovem mãe rastreia o inestimável:

“Deixei para trás coisas com memória”, lamenta. As coisas com memória, sabe na marra Zeinab, formam uma cartografia da resiliência. Ela fala ao documentarista Gabriel Chaim como quem sussurra uma prece.

Grávida de oito meses, Zeinab Nam e as duas filhas juntam-se às famílias despejadas pela guerra. Chaim acompanhou a tortuosa espera de algumas delas rumo ao Brasil (Globoplay). Lembranças ajudam a mantê-las de pé. Refúgios.

O horror realça a importância das memórias tecidas igual cordel enquanto o tempo corre, enquanto escorre vadio até anoitecer. Pegadas sem as quais nos restaria o vazio.

Memórias singelas, ariscas que nem pipa, revisitadas numa tarde de sol. Memórias graúdas, históricas, de porta-retrato. Prosa e poesia.

Memórias que restauram o quintal infantil, a loucura juvenil, o invisível. Memórias sagradas, farofadas, da casa e da rua.

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Memórias bordadas por cantigas e rodas, lâminas e laços, por tudo que o peito jamais esquece. Memórias de algazarra e de silêncio. Memórias.

Nelas mergulham craques como o criador dos festivais Cinefoot e Cine Esporte, Antonio Leal; a cineasta Cecília Lang, cujo delicioso documentário “Bola pro alto” radiografa a cultura praiana pela lente da altinha; o colecionador Luís Quedinho, arqueólogo de simbólicas camisas do nosso futebol; a jornalista Mariana Claudino, coautora, ao lado de Luiz André Alzer, do relançado Almanaque Anos 80.

Craques como o também jornalista e boleiro Sérgio Pugliese, fundador do Museu da Pelada; o maestro do Flu-Memória, Dhaniel Cohen, cujos 26 livros oficiais escritos ou organizados sobre o Tricolor expressam, além do clube notável, uma cidade refletida nos gramados; como o versátil Sidney Garambone, curador dos “11 maiores volantes do futebol brasileiro” (Contexto) e codiretor, com Gustavo Gomes, do documentário “Galvão: olha o que ele fez”.

Habilidosos em reavivar enredos alheios, esses alfaiates da memória lembram abaixo histórias próprias. Histórias afetivas, sabor jujuba. Rimam dois amores em comum: o universo esportivo e a alma carioca.

Antonio Leal, fundador do Cinefoot e do Cine Esporte:
Enfeitiçados pela Geral

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“Brasil está vazio na tarde de domingo, né? Olha o sambão, aqui é o país do futebol. A melodia ‘Aqui é o país do futebol‘, composta por Milton Nascimento e Fernando Brant, gravada por Wilson Simonal, dá o tom daquele domingão inesquecível de 10 de abril de 2005.

O Maracanã recebia a primeira partida da final do Campeonato Carioca, entre Fluminense x Volta Redonda, a antepenúltima antes do fim da Geral. Durante a semana vivi a expectativa de levar os filhos tricolores Diogo (21 anos) e Tiê (11 anos) para conhecer o espaço mais democrático do Maraca. E vivermos uma memorável experiência.

Após um início avassalador, o Flu permitiu a virada do Volta Redonda: 4×3. Mas naquela tarde de domingo não teve derrota. Teve legado. Foi uma vitória estarmos ali, juntos, com um olho no jogo e outro no entorno da magia da Geral, para sempre impressa em nossa memória.

No domingo seguinte o tricolor aplicou uma virada épica e se sagrou campeão carioca pela 30ª vez”.


Cecília Lang
, diretora do documentário “Bola pro alto”:
É dia de mate, bebê

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“Quando minha filha tinha um ano, nosso ritual quase diário era acordar cedinho e ir à praia. A gente ficava em frente à Garcia D’Ávila, em Ipanema, ao lado da escolinha de stand-up do pai dela, na parte alta da areia. A hora mais feliz era quando eu chamava o mateiro que passava lá embaixo na beira: ‘Mate!’. Ele vinha de longe, elegante, com sua roupa colorida e seus dois galões prateados. Oferecia um copo de mate bem gelado e docinho pra mim e um pacote de Biscoito Globo pra ela. Enquanto minha filha saboreava cada grande roda do biscoito de polvilho, que demorava muuito a acabar, eu bebia em goles bons a bebida que mais amo no planeta. Ali nossa paz era silenciosa e imensa.

Um dia, canga na areia, guarda-sol aberto, ela empezinha ao meu lado, desponta no horizonte nosso amigo de blusa laranja quase fosforescente, pele negra retinta de pura nobreza. Em meio ao som das ondas, somos surpreendidos pela vozinha forte da pequena que, no alto de seus 60 centímetros, entoa: Báti. Eis a primeira palavra balbuciada por minha filha, antes mesmo de ‘mamãe’ , ‘papai’. ‘Mate!’ Até hoje não sei é se ela queria dizer o nome do nosso amigo colorido, o do biscoito grande e gordo, o da bebida escura ou todos juntos.”


Dhaniel Cohen
, gerente do Flu-Memória:
Clássico dos clássicos

“Como cravou Nelson Rodrigues, o ‘Fla-Flu nasceu 40 minutos antes do nada’. Faz todo sentido. Jogo mais especial não existe. O duelo de cores entre as duas torcidas reflete o espetáculo corriqueiro em campo. A partida é um grande símbolo do Rio e um dos maiores patrimônios imateriais do Brasil.

Bem pequeno, ainda criança, eu já era um tricolor ferrenho que influenciava muitos amigos. Tinha quase 6 anos quando fui ao Maracanã assistir ao meu primeiro Fla-Flu, em 12 de dezembro de 1984, com quase 155 mil torcedores. De cabeça, aos 30 do segundo tempo, Assis marcou o gol que deu o bicampeonato carioca ao Flu. Meu ídolo de infância virou um grande amigo na vida adulta. Tive o prazer de trabalhar com ele em nosso clube de coração.

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Em 2023, quase 40 anos depois, levei meu primogênito para o seu primeiro Fla-Flu. Assim como meu pai, escolhi a partida a dedo: o Fluminense venceu por 4 a 1 e se sagrou bicampeão carioca. Que destino! No meu primeiro Fla-Flu, saí bicampeão com meu pai. No primeiro Fla-Flu de Yonathan, ele saiu bicampeão ao meu lado”.


Luís Quedinho
, colecionador, fundador do Charuto Futebol Clube:
Sabores de arquibancada

“O dia em que ganhei, do meu pai, a primeira camisa oficial do Flamengo é inesquecível. Criança não usava, no início dos anos 80, camisa oficial. Vivenciei com meu pai, radinho no ouvido, momentos memoráveis no  Maracanã, muitos além do jogo. O cachorro-quente, por exemplo, era tradição da arquibancada, um patrimônio carioca.

Certa vez, eu, meu pai e meu irmão víamos o Flamengo contra um pequeno. Eu tinha 12 anos. Meu pai decidiu comprar cachorro-quente. Quando ele pagava, meu irmão já tinha comido o sanduíche e pedia outro. O vendedor percebeu o comilão e ficou pelas redondezas até o fim da partida. Meu irmão ainda comeria um terceiro cachorro-quente.

Não esqueço também quando fiquei lado a lado com medalhões do Vasco. Minha avó conhecia o folclórico massagista Santana e me arrumara um teste em São Januário. A peneira era feita pelo [ex-jogador] Mário Tilico, que nos mandou correr em volta do campo. Aí entram, para o treino, Dinamite, Dudu, Acácio. Era um sonho de menino do subúrbio ver de perto os profissionais”.

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Mariana Claudino
, coautora do Almanaque Anos 80:
Chamegos do Mengão

“O ano era 1981. Eu era louca pra ter um bichinho de estimação e vivia pedindo pros meus pais, sem muito sucesso. Até que no dia 22 de novembro daquele ano, minha madrinha fez uma surpresa pra todo mundo: quando entrei no carro dela, lá estava um gatinho macho ainda filhote, com no máximo 3 meses, todo rajadinho e olhos amarelos. Era um presente pra mim, do alto dos meus 7 anos!

Não restava dúvida de que aquele gatinho seria meu. Mas e o nome, qual dar? Nem pestanejei: como era a noite do jogo da final da Libertadores, entre Flamengo x Cobreloa (Chile), decidi que, se o Flamengo perdesse a partida, ele seria batizado de Menguinho; se empatasse, seria Mengo; se ganhasse, seria Mengão. Foi assim que o Mengão ganhou seu nome e viveu quase uma década entre chamegos, carinhos e jogos do Flamengo ao meu lado!”


Sérgio Pugliese
, fundador do Museu da Pelada:
O Pelé de Santa Teresa

“Dia desses, no Centro, o cara num triciclo de lavanderia gritou, do outro lado da rua, meu antigo apelido: ‘Cizinhooo’. Não o reconheci de prima. Deduzi que fosse de Santa Teresa. Lá joguei bola por 33 anos. Lá vivi meus grandes momentos no futebol. Jogava no CAP, que virou Solar das Ruínas, e na quadra do Odilo Costa Neto. Disputei torneios pelo Mulambada, pelo Santa Teresa, pelo Polaris. Tinha um confronto maravilhoso: Vamos Nessa contra Ocidental, time do Morro da Coroa.

Os jogadores que me encantavam estavam ali, não na TV. Garoto, eu admirava um ponta chamado Macumba. Os gols que ele fazia, driblando todo mundo, eram coisa de extraterrestre. Moleque ensaboado, tipo Dener (atacante da Portuguesa paulista e do Vasco morto num acidente de carro, em 1994, aos 23 anos). Ninguém parava o Macumba. Ele, o Jassa e o Tura eram os pelés dali. Foram ídolos, para mim, iguais ao que seria depois Roberto Dinamite. Eu ficava feliz até em vê-los calçando as chuteiras.

Quando percebi que era o Macumba no triciclo, foi uma loucura. Não o via há 40 anos. Demos um longo abraço, do tamanho da alegria vivida naquela quadra. Fui embora com a sensação de felicidade de quem aproveitou a vida. Conheci várias pessoas assim, que mal sabem como foram especiais. Talvez seja por isso que eu busco valorizar, com o Museu da Pelada, a turma que jogou muito, alegrou muita gente, mas não tem o reconhecimento que merece”.


Sidney Garambone
, autor de “11 maiores volantes do futebol brasileiro” e codiretor de “Galvão: Olha o que ele fez”:
Todos fomos Bangu

“Pode ser feliz e triste numa noite só de Maracanã torcendo para um time carioca que não é o seu? Aconteceu uma vez. Única vez. Final do Brasileiro de 85. Bangu x Coritiba. A cidade inteira estava lá. Fisicamente e espiritualmente. Torcendo pro Bangu. Camisas de todos os clubes. Sem brigas, só apoio.

Bangu perdeu nos pênaltis. O Bangu não. A cidade inteira. Perdemos. As estatísticas deviam mudar. Todos os times cariocas foram vice-campeões brasileiros. Com muito orgulho, aliás. Eu estava lá. Sentindo-me visceralmente carioca. Inesquecível.”

______

Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.

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