Corre nas redes a tabelinha de Zico com o velho Antunes. Revivido pela inteligência artificial, o patriarca da família de craques, morto em 1986, ecoa no alto-falante do Maraca. Pede para o filho marcar um derradeiro gol ali no estádio que o consagrou. Cativante.
A terna homenagem ao Dia dos Pais promove uma marca do varejo online. A jogada publicitária lembra o recente dueto entre Elis e Maria Rita orquestrado em propaganda de uma fábrica automobilística.
A emergente tecnologia atiça reflexões proporcionais à fantasia despertada. Do Senado americano às grandes empresas e universidades, fervem debates sobre o alcance e os riscos da IA, sobre seus usos e limites éticos, seus perímetros autorais e legais, seu cacife econômico e suas modulações normativas.
Nossas filosofias ainda estão longe de precisar os céus e infernos do recurso em alta. Enquanto isso, o marketing já o explora para dourar relacionamentos de consumo.
O reencontro de Zico com o pai constitui um prelúdio da potente rima entre o avanço tecnológico e o mercado esportivo. Ela redimensiona os entrelaces materiais e imateriais com um universo povoado de personagens folclóricos, cenas marcantes, filiações afetivas.
A ferramenta inaugura uma Disneylândia diabolicamente imersiva e expansiva, tão insondável quanto irreversível. Reconstrói memórias, realidades, relações, subjetividades. Reconfigura as fronteiras oníricas, como se brincasse no quintal dos deuses. Recria histórias e a História.
A revolução em curso sorri a aspirações comerciais, historiográficas, socioculturais. Potencializa da arqueologia esportiva às conexões com ídolos e enredos sublimes, com o passado vivido ou idealizado.
Imaginemos, por exemplo, o gol do primeiro título sul-americano brasileiro, rebote certeiro de Arthur Friedenreich ao cair da segunda prorrogação (não havia disputa de pênaltis), reconstituído por requintes virtuais. Imaginem o feito narrado pelo artilheiro e comentado por Pixinguinha, que eternizou a vitória sobre o Uruguai, em 1919, no choro “Um a zero”.
Imaginemos experimentar a façanha como avatar holográfico de um dos 25 mil espectadores que lotavam o estádio das Laranjeiras e os morros adjacentes. Ou do próprio Friedenreich, sob o delírio da galera que se enamorava pela seleção e germinava sua identidade cultural e mitológica. (A conquista é deliciosamente retratada no livro “Sul-americano de 1919: quando o Brasil descobriu o futebol”, de Roberto Sander, e no minidocumentário “A primeira estrela”, do Globo, produzido e roteirizado por Giovanni Sanfilippo.)
“A tecnologia bem aplicada fortalece a memória, ilumina personagens e fatos importantes. Ajuda a restaurar preciosidades históricas e facilita o acesso a acervos do esporte”, destaca o fundador e gestor do Museu da Pelada, Sérgio Pugliese. “Os fãs se aproximam de lances e jogadores dos quais só haviam ouvido falar. É emocionante”, completa.
Embora a controversa IA generativa – reconstituição de traços biométricos – seja uma instigante bola da vez, a relação entre inteligência artificial e esporte insinua-se mais vasta. “Abrange desde a recriação de gols até usos preditivos, como análise de padrões de jogo, detecção de novos talentos e otimização de performance”, aponta o coordenador da ênfase em Comunicação e Tecnologia da graduação em Estudos de Mídia da PUC-Rio, Marcelo Alves. Ele acrescenta:
“Vivemos uma fase experimental, em que esses potenciais são testados por agências de publicidade”, acrescenta o pesquisador, também à frente do Núcleo de Tecnologia do Departamento de Comunicação da PUC-Rio (NuTec).
Sem menosprezar o encanto gerado por duos como o de Elis Regina com Maria Rita e o de Zico com Antunes Coimbra, tal modelo, ressalva Marcelo Alves, exige reflexões e cuidados compatíveis à sua complexidade. “Vejo com certa preocupação o uso de informações biométricas de pessoas falecidas, como voz, imagem, vídeos. Ainda que com a autorização da família, isso traz mais um desafio para os direitos autorais”, pondera.
Muitas são as incertezas em torno dos usos, impactos e moldes legais da inteligência artificial. Pesquisadores, autoridades públicas e corporações rascunham essa cartografia pela qual o mercado e a sociedade contemporânea navegarão nas próximas décadas.
O dever de casa estende-se à indústria esportiva. Clubes, federações, investidores precisam amadurecer tanto os caminhos para consolidar a IA como um banquete de vivências extraordinárias ao torcedor-consumidor quanto as bússolas ético-normativas para evitar os precipícios à espreita.
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Alexandre Carauta é professor da PUC-Rio, doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.