Futebol: última chamada do trem para as estrelas
Para o país se aproximar do espetáculo jogado noutro planeta, dirigentes precisam construir o consenso de que o todo se impõe às partes
Dizem que o basquete americano pertence a outro planeta. Chuteiras europeias empreendem distinção semelhante.
Real x City se alojava noutra órbita. Até as amendoeiras prenunciavam o jogaço. Ele eclodia nas redes muito antes de superar a expectativa.
”Seria a apoteose da semana, se o Vasco não enfrentasse o CSA”, brincava um gaiato na roda de amigos. Viva o bom humor!
Ecoada nas esquinas, a semifinal da Champions reforçou a desconfortável convicção de que os bambas da Europa jogam outro jogo. Pelas equipes transformadas em seleções multinacionais. Pelo tempero tático do banquete técnico, e vice-versa. Pelos gramados impecáveis. Pelo planejamento cirúrgico. Pela arbitragem eficiente e discreta. Pela civilidade, essencial à fluidez do espetáculo.
Tudo isso transforma a Champions, e o campeonato inglês, numa Broadway. Nem precisava da virada antológica. Castigo à elegância impetuosa do time – dos times – de Guardiola. Prêmio à perseverança dos comandados por Ancelotti. O Sobrenatural de Almeida aplaudia. Teria feito parecido.
Além de incendiarem o Bernabeu e ressuscitarem o rumo espanhol à final, os gols de Rodrygo nos acréscimos certificaram o esporte em cartaz naquela Broadway. Outro esporte. Mais permeável aos enredos épicos, à vertigem da arte, à unção dos deuses.
Tal soberania respinga na importação por atacado dos técnicos portugueses. Alguns a consideram exagerada, uma reciclagem do complexo de vira-lata. Muitos aprovam. Identificam uma desejada oxigenação de táticas e treinos estacionados no passado. Tintas frescas numa aquarela desbotada.
Reavivar nossa aquarela, aproximá-la do arco-íris europeu sem colonizar matizes locais, implica uma longa e complexa caminhada. Estende-se, por exemplo. do saneamento político, administrativo e financeiro à recalibragem do calendário asfixiante.
A maratona larga de uma pragmática empatia: o todo impõe-se às partes. O consenso em torno da filosofia ganha-ganha, sem a qual se perpetuam voos de galinha, talvez seja o passo mais difícil.
Não basta replicar modelos de liga esportiva bem-sucedidos acima do Equador, muito menos se escorar na vocação nacional para fabricar talentos. É preciso construir uma gestão comunitária imune a egoísmos, obscurantismos, conchavos, na qual diferenças e divergências convirjam ao objetivo comum de melhorar o futebol brasileiro. Todos ganham.
Dessa mudança depende o embarque no trem para as estrelas, para o centro do palco. Senão perderemos a última chamada, e teremos nós, logo nós, o país da bola, de nos contentarmos com a coxia.
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No meio da galera
Nossa cultura boleira é irrigada não só por dribles, gols, títulos. Deriva também das filiações imateriais constituídas nas arquibancadas, suas dinâmicas, seus personagens, seu folclore. O historiador Bernardo Buarque de Hollanda e a antropóloga Rosana da Câmara Teixeira iluminam uma parte saborosa deste universo em “Nada pelo Flamengo, tudo pelo Flamengo: memórias da Torcida Jovem do Flamengo (1960-1990)“, da Editora UFRJ.
As 290 páginas transitam por alianças, rivalidades, pulsações da torcida ao longo de três décadas. O garimpo historiográfico transcende o perímetro rubro-negro. Escava um jogo de representações e vivências extensivo à mitologia do futebol e suas raízes verde-amarelas.
O livro será lançado dia 26, às 18h, na sede do Flamengo, na Gávea.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.