Esquinas do Esporte Por Alexandre Carauta, jornalista e professor da PUC-Rio Pelos caminhos entre esporte, bem-estar e cidadania
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O espelho dos Fla-Flus entre os interesses privados e o bem comunitário

Professora de bioética evoca consenso internacional: bem-estar coletivo se impõe a direitos e conveniências particulares, especialmente numa pandemia

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Atualizado em 21 Maio 2021, 16h57 - Publicado em 21 Maio 2021, 13h31
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  • Pandemias são espelhos morais. Cartografias éticas. Refletem as prioridades e os valores com os quais guiamos o cotidiano, a vida social, o amanhã.

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    Podemos reconhecê-los, por exemplo, nos arranjos de distribuição das vacinas e na ambicionada transferência do Fla-Flu decisivo para Brasília. Sintomas da supremacia de conveniências particulares sobre o interesse coletivo. Vem de longe no Brasil.

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    Há muito esse domínio naturaliza desigualdades, privilégios, desamparos. Numa pandemia, aprofunda-se em criminosas desumanidades.

    O acesso às vacinas deveria conjugar o âmbito comercial com as diretrizes da saúde pública e da igualdade social. Os mais vulneráveis precisam recebê-las primeiro. Óbvio, não?

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    Mesmo consagrado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e no Regulamento Sanitário Internacional, o óbvio não resiste a imposições econômicas, políticas, classistas. Nelas se enquadra a imunização de atletas para a Olimpíada e as Copas Libertadores e Sul-Americana. Assim avaliam imunologistas e especialistas em bioética.

    Descontados os eufemismos e as justificativas em torno do cacife socioeconômico das categorias beneficiadas, as exceções furam a fila. Cultivam uma consciência coletiva equivalente aos que fraudam comorbidades para antecipar a agulhada.

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    “Esses casos invertem um consenso internacional especialmente importante numa pandemia: os interesses coletivos se impõem a direitos individuais e privados, não o contrário. É um princípio universal, evocado de forma emergencial quando enfrentamos ameaças à vida das nações. Um consenso indiscutível no mundo civilizado”, explica a professora de bioética da Universidade de Brasília Aline Albuquerque, fundadora do Instituto do Direito do Paciente.

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    A sobrevivência da sociedade está em jogo, reitera Aline. Nenhum interesse particular suplanta a urgência comum. Supõe o acesso prioritário a recursos médicos para pessoas com risco maior à Covid.

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    A prerrogativa patina em omissões, incompetências, obscurantismos, egoísmos, ganâncias. Uma redundância da estiagem de empatia e compaixão evidenciada na crise dos refugiados. Alimenta-se do desprezo às leis, ao outro, ao bem comum.

    Ingredientes similares germinaram a ideia de exportar o Fla-Flu para o Mané Garrincha, a quase mil quilômetros da capital fluminense. O estádio acenava a perspectiva de público no duelo decisivo, vetada pela Prefeitura do Rio.

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    A proposta do Flamengo e da Ferj configurava-se mais do que um drible na proibição legal. Constituía um desembarque dos esforços sanitários para conter infecções e mortes em larga escala. Reforçava o falso dilema entre economia e saúde. Felizmente não prosperou.

    “Estamos diante de uma emergência global: a preservação da vida, ameaçada pelo vírus. Só conseguiremos vencê-lo com cuidados sanitários e vacinação em massa, a começar pelos mais vulneráveis. Este interesse coletivo é o norte ético na pandemia”, enfatiza a professora. Ela completa:

    “Numa pandemia, até um direito elementar como a locomoção é suspenso para preservar o bem social. A prioridade aplica-se à restrição de público nos estádios, bem mais branda do que a do direito de se locomover”, compara Aline, autora de “Manual de Direito do Paciente” (Editora CEI), “Bioética e direitos humanos” (Loyola) e coautora de “Bioética e Covid-19” (Foco).

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    Professora Aline Albuquerque
    Aline Albuquerque: “Direitos da coletividade são prioritários” (Divulgação/Reprodução)

    Ambições e necessidades econômicas de Olimpíada, Libertadores, Estaduais, federações, clubes, atletas não caminham acima dos deveres conjuntos, emergenciais, para domar o vírus. A vasta geração de emprego e renda da indústria esportiva não a torna uma bolha. Pelo contrário, o peso socioeconômico, midiático e simbólico do esporte pode se converter em potentes estímulos ao engajamento social.

    O potencial tem sido confrontado por manobras para apartar o futebol da realidade comum. Como se não estivéssemos ainda em plena pandemia. Como se derrotá-la fosse problema alheio.

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    Escolhas assim atrasam a desaceleração de contágios, mortes, sofrimentos. Também moldam identidades, representações, reputações. Impactam relações de consumo, cada vez mais influenciadas por responsabilidades socioambientais.

    Talvez esse pragmatismo de mercado aplaque a arquitetura de realidades paralelas. Talvez baste uma leitura mais atenta do artigo 39 da Declaração Universal dos Direitos Humanos:

    1. O indivíduo tem deveres para com a comunidade, fora da qual não é possível o livre e pleno desenvolvimento da sua personalidade.
    2. No exercício deste direito e no gozo destas liberdades ninguém está sujeito senão às limitações estabelecidas pela lei com vista exclusivamente a promover o reconhecimento e o respeito dos direitos e liberdades dos outros e a fim de satisfazer as justas exigências da moral, da ordem pública e do bem-estar numa sociedade democrática.

    Óbvio, não?

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    Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, especialista em Administração Esportiva, formado também em Educação Física.

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