Desigualdade assombra também o nosso futebol
Com raízes culturais e político-administrativas, desequilíbrio no andar de cima ameaça a competitividade e a jocosa resenha que lubrifica o mundo da bola
“A superioridade de Flamengo e Palmeiras avança perigosamente. Prejudica a competitividade e o relacionamento entre os torcedores. Antes o seu time ganhava no domingo e você provocava o rival, mas no domingo seguinte era a vez dele. O desequilíbrio em marcha esvazia essa alternância elementar ao futebol e ao trato social”.
O diagnóstico foi feito pelo jornalista Marcos Uchôa no programa Resenha de Primeira, apresentado por Christian Baeta. O coração rubro-negro não lhe turva a habitual lucidez.
Dez Olimpíadas e oito Copas na bagagem, Uchôa enverga um incansável olhar sobre as dimensões socioculturais, econômicas e políticas que irrigam o futebol. Sem menosprezar seu peso comercial, tampouco as fragilidades brasileiras e humanas, ele alerta para uma extensão da nossa desigualdade crônica:
“O progressivo distanciamento do Fla em relação a outros grandes, principalmente do Rio, replica o país desigual onde 30 milhões passam fome. O esporte deveria, ao contrário, buscar o equilíbrio e a integração. Isso também seria bom para os negócios. Quanto mais equilibrada uma disputa, mais atraente ela fica”.
A esperada harmonia oxigena tanto o espetáculo e o seu consumo quanto a cadência das relações jocosas, como diz o antropólogo Edison Gastaldo, típicas no mundo da bola. Até porque o espetáculo alimenta a resenha, e vice-versa.
Decisiva ao magnetismo da atração midiática, a equivalência entre os adversários caminha sobre três condições: visão de negócio, competência administrativa, convergência política. Supõe a prevalência de interesses coletivos sobre ambições particulares, não raramente míopes.
A receita é seguida à risca pelo pragmatismo das principais ligas americanas e europeias. No Brasil, a fórmula claudica frente à secular retranca patrimonialista.
Inspirada nas primas ricas, a associação ora rascunhada pela elite do futebol nacional tem a oportunidade de dissolver essa ferrugem. Uma chance dourada de espanar o ranço clientelista e individualista.
A distribuição da verba relativa aos direitos de transmissão indica o tamanho do desafio. Caso prevaleçam diferenças abissais, bem acima do valor correspondente à audiência gerada por cada clube, o show, a resenha e os lucros tendem a desbotar com o tempo.
Francisco Horta sabia disso ao promover o troca-troca entre os gigantes cariocas no fim da década de 1970. O presidente do Flu temia que a Máquina sob a batuta de Rivellino perdesse concorrentes e os jogos ficassem sem graça.
Tricolores, lógico, detestaram o reequilíbrio impreterível para o viço do campeonato. A manobra visionária revelou-se exceção. Não desencadeou a mudança cultural necessária ao amadurecimento da gestão esportiva.
Àquela altura, não estávamos preparados para o salto. O esboço da nova (?) partitura político-administrativa e econômica do futebol brasileiro ainda não nos autoriza a identificá-lo no horizonte.
Descontadas as densidades distintas, o país – 87º no ranking de desenvolvimento humano da ONU – e o futebol encaram dilema de contornos shakespeareanos. Chega a hora de decidirem o que efetivamente são e querem ser, escolherem as independências que pretendem ou não conquistar.
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Nos embalos do rádio
Inquilina da identidade boleira, a resenha, ora multimídia, floresce a partir do centenário rádio. Desde os anos 1930, suas vozes ativam o espetáculo esportivo e as prosas que unem patrões e empregados, esquerda e direita, solteiros e casados.
Mergulhados nessa caixa mágica, nos aventuramos perdidamente no universo dos gramados. Viramos homeros da arquibancada, dos botecos. Cultivamos heróis e vilões de estimação. Permanecemos crianças ao sabor de uma eterna história em quadrinhos.
Impossível constituir-se torcedor longe do quintal regado pelo rádio. Ali construímos nossa Pasárgada, dourada de afetos, dramas miúdos, entusiasmos, feita de belezas indispensáveis a quem um dia colou ou pensou colar o radinho no ouvido para que a peleja transborde por todos os poros.
Da gaitinha de Ary Barroso – especialmente animada no gol do seu Flamengo – aos bordões confeitados por bambas como Geraldo José de Almeida, Waldir Amaral, Jorge Curi, Osmar Santos, Silvio Luiz, Edson Mauro, José Carlos Araújo, Luiz Penido, Oscar Ulisses, os enredos sonoras até hoje colorem a imaginação. Embalam paixões.
Sem o rádio, o futebol não seria uma sombra do que é. A relação visceral, histórica, recalibrada pela internet, será discutida na próxima quarta (14), às 15h, pelo comentarista da Globo/CBN Rafael Marques e pelo locutor da Transamérica Bruno Cantarelli, com mediação do também jornalista e radialista Creso Soares Jr., professor da PUC-Rio.
O papo integra o Dia do Rádio, série de debates organizada pelo jornalista, professor e escritor Mauro Silveira, autor do premiado “O caso Proconsult: a história da tentativa de fraude que caiu no esquecimento”. O encontro será transmitido pelo canal do Departamento da Comunicação da PUC-Rio no Youtube.
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Alexandre Carauta é doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, também formado em Educação Física.