Domingo de carnaval. Uma dúzia de cariocas entre 17 e 19 anos troca a folia pelo futebol com as mãos. O encontro representa mais do que a farra entre amigos prestes a se dispersarem na vida universitária.
Reúnem-se para ver o badalado Super Bowl, final da maior liga esportiva americana (NFL). Somam-se aos 115 milhões que assistem à suada vitória do Kansas City Chiefs sobre o São Francisco 49ers.
A enorme audiência estica a cada temporada. Rende dezenas de bilhões de dólares em patrocínios, direitos de transmissão, propaganda, serviços. Não à toa o comercial de 30 segundos durante o duelo custa US$ 7 milhões, algo em torno de R$ 35 milhões.
A turma de amigos mescla iniciados, simpatizantes, leigos. Divertem-se, e até torcem, sem o peso das rivalidades clubísticas. Não destronam Flamengo, Fluminense, Vasco, Botafogo, mas aos poucos seus corações se alargam à bola oval.
Atenta a esse público crescente, a NFL concentra no Brasil as fichas da internacionalização. Fora dos Estados Unidos, só os mexicanos acompanham mais a competição do que os brasileiros.
O consumo engrena à medida que se intensificam jogadas de marketing para expandir a relação com o esporte predileto dos americanos. A primeira partida regular na América do Sul, em setembro, estádio do Corinthians, impulsiona e indica o salto desejado.
Alguns garotos já dedicam ao emblemático confronto a obstinação de quem cultua um astro do rock. Noutros jovens, a novidade ativa a curiosidade pelo jogo que une safanões, requintes táticos, apelos midiáticos. Assim nascem os fãs.
O crescimento deriva tanto da maior proximidade às pelejas, regras, estratégias, aos atletas e personagens icônicos, difundidos pelo streaming, quanto dos atrativos que douram o espetáculo e a experiência de acompanhá-lo A fórmula do sucesso inclui a destreza promocional copiada pelas principais ligas europeias.
Enquanto isso, ainda acreditamos que a paixão pelo time do peito renova-se automaticamente e releva, com a paciência dos monges, sistemáticas negligências. Temerária ilusão.
Enquanto o xará americano desponta no retrovisor, o futebol doméstico, símbolo da nossa identidade cultural, patina no atraso, próximo da contramão. Derrapa nos campos e nos escritórios que dele deveriam cuidar com competência e responsabilidade compatíveis à estatura histórica, social, econômica.
A grama frequentemente sofrível do Maracanã diz mais sobre o profissionalismo e o horizonte do futebol verde-amarelo do que a salvação financeira atribuída às SAFs. Igualmente sintomáticos revelam-se a eterna demora na criação da liga nacional e o desgoverno cumulativo no poder central.
A guinada esportiva e comercial exige uma pragmática convergência entre os sócios. Interesses coletivos precisam suplantar conveniências estacionadas no umbigo. O pacto, sem o qual nenhum grande negócio vinga, esbarra no patrimonialismo e no oportunismo estruturais.
Desta orquestração dependem os avanços para o voo nos gramados e nos negócios. Envolvem, por exemplo, erradicação das violências crônicas, boa parte decorrente de preconceitos viscerais; aperfeiçoamentos na formação, retenção e distribuição de talentos; melhor promoção de campeonatos e jogos, afinada às dinâmicas digitais; reconciliação entre competitividade e encanto; saneamento do calendário; expansão de vivências memoráveis alinhadas aos capitais esportivos, simbólicos e afetivos das equipes.
Talvez a arrancada da bola oval acenda o alerta quanto aos amadurecimentos imprescindíveis para as asas do nosso futebol não derreterem sob a radiação de desavenças políticas, miopias gerenciais, amadorismos renitentes. Ou estaremos condenados ao voo de galinha.
A moçada reunida no carnaval para curtir o SuperBowl é só o começo. Um recado eloquente aos que podem ou querem ouvir.
_________
Espelho quebrado
Outra mensagem veemente parte do fiasco no torneio pré-olímpico. Como receia o samba de João Nogueira (ave, João!), o espelho se quebra. O Brasil não reconhece o Brasil.
O diabo não é a derrota para a Argentina, nem mesmo a consequente desclassificação aos Jogos de Paris. Vergonha suprema é a perda de identidade e identificação. Não esfarelaram subitamente, como um castelo de areia atingido pela onda. Definham há muito tempo. Só podia dar no que deu.
Aos realistas, o vexame não evoca casualidade ou surpresa. Não constitui acidente de percurso. A pedra é progressivamente cantada pela reciprocidade entre o estio de craques (craques à vera, não bons jogadores) e os colapsos administrativos.
Seria leviano menosprezar a influência do time opaco e do treinador. Talvez Ramon fosse o único mortal a considerar que a vantagem do empate no tira-teima decisivo tornava dispensáveis o artilheiro John Kennedy e, depois, o prodigioso Endrick.
Mais leviano seria subestimar os desacertos políticos que deitam raízes na gestão do patrimônio sociocultural globalmente prestigiado. Sem corrigi-los, continuará difícil nosso futebol reaver a ousadia envolvente, o ímpeto artístico, os títulos. É preciso consertar o espelho.
___________
Alexandre Carauta é jornalista e professor da PUC-Rio, integrante do corpo docente da pós em Direito Desportivo da PUC-Rio. Doutor em Comunicação, mestre em Gestão Empresarial, pós-graduado em Administração Esportiva, formado também em Educação Física. Organizador do livro “Comunicação estratégica no esporte”.